A rua é o meu chão preferido. Mesmo que ela não me traia, que me conte a verdade. A verdade das ruas é dura, ela aparece nos rostos anônimos, em quem anda fora dos carros, dos coletivos, a rua dos trecheiros, de quem faz da errância o caminho.
A rua é o chão que me acolhe quando sinto desamparo, não em busca de respostas, mas da real que esclarece.
Vou da Barra Funda ao Bom Retiro.
No meio do toada um pedacinho dos Campos Elísios. Ando na rua das repartições estaduais quase abandonadas. Defronte à Diretoria de Ação Social, penosa coincidência. Um prédio bonito, que teve os seus dias, hoje encardido, sem função. O bairro que foi do baronato do café, hoje é o Estado ausente. Prédios prontos pra dizer não a quem os procura. É um abandono planejado.
Um dos retratos de uma São Paulo que acolhe e repele.
Na Alameda Nothmann, coração dos Campos Elísios, um rapaz negro, cabelo a Peter Tosh, se aproxima sorridente e me mostra feliz um pequeno painel com um tecido colado e nele desenhos egípicios:
– Achei ali na frente daquela casa (um sobradão do século passado), vale um bom dinheiro lá na República, mas eu tenho medo de ir lá porque a rapaziada é muito violenta.
Pensei na geopolítica das ruas, um andarilho dos Campos Elísios receoso de ir fazer escambo nas ruas da República. A rua e suas abrangências.
Avanço na Alameda com a Rio Branco, no meio do quarteirão um policial recomenda:
– Moço não vai por aí, é perigoso.
Olho em frente e vejo uma concentração de corpos esquálidos, pra lá e pra cá sem rumo. Meneio a cabeça pro policial e sigo seu conselho sem crítica. Em outros tempos seguiria sem medo. Sigo pela avenida Rio Branco, tarde bonita desse outono, contraste para essa cidade que nunca foi tão triste.
Faço o contorno pra chegar no Bom Retiro. Vou pra Casa do Povo, compro um livro na biblioteca coletiva e saio.
Volto pra rua e sigo contornando o Parque da Luz, vejo dois trios separados na calçada jogando um carteado em cima de um papelão. Homens do povo, com roupas rotas, concentrados nas cartas, um ritual silencioso. Curioso este movimento lúdico nas beiras do parque. O jogo da vida.
Em frente à Pinacoteca atravesso e sigo pra Estação da Luz, o sol segue morrendo, esfria a tarde e as cores vão ficando densas, fortes. Um senhor com uma mochila pede um dinheiro, dou um e vinte, puxo uma conversa e seguimos ladeados:
– Meu nome é Nelson, já tive comércio e família. Caí na rua há muito tempo, bebidas e tal. Cheguei a voltar pra casa. Aí, minha filha foi presa, tá presa, artigo 157. Ela é inocente, foi o namorado, ela pagou junto. Eu não tenho mais casa, nem pra onde voltar
O rosto anônimo da rua que tem sua história que nunca é linear, segue:
– Hoje em dia a gente tem medo de GCM, os PM estão de boa, nem mexem com a gente. GCM vem com a rapa e toma cobertor e as coisas da gente. É ruindade, muita ruindade…
Me despeço de Nelson e uma fala familiar, dura de ouvir, se repete:
– Moço, obrigado por falar comigo, as pessoas têm medo da gente, fogem, é bom ser ouvido…
O frio chega no fim da tarde, o sol já é pálido, uma nuvem no cimo do horizonte da Estação Carlos Prestes chama a atenção, parece um sinal…é São Paulo mudando seu turno.