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Arquivo mensal: agosto 2018

Reinaldo Azevedo ocupa um espaço pra lá de vazio na crônica política e não é de hoje.

A direita civilizada e com texto e preceitos legíveis é um deserto.

E é aí que há tempos ele se instala.

Confesso que há muitos anos leio Reinaldo. Com isso, não quero dizer que antevi a distinção que ele representa agora, mas pra mim sempre foi nítido que o ex colunista da Veja orquestrava habilmente o ódio e a ira militante que tanto fomentou, determinava a linha e rumo.

Já faz um tempo que Reinaldo aponta o dedo vigorosamente para a judicialização da política e os estragos causados por aqueles que ele chama de jovens turcos de Banania.

Militante, ele anteviu o renascimento de Lula nas urnas e fora delas, embalado pelos algozes de toga, fazendo inclusive a exumação do processo sumário e viciado que o colocou na cadeia. Tudo com a necessária argúcia e didática e reafirmando que ainda discordava de Lula.

Ele nunca defendeu e jamais defenderá Lula e o PT. Esperava a derrota moral e política de seus adversários ideológicos. E aponta o lawfare e a perseguição jurídica como o motivo da frustração desse desejo.

“Isso ainda vai transformar o Lula em vítima”

Ele mudou pra confirmar o que pensa e ser coerente com o que sempre defendeu.

Reinaldo Azevedo soube ler os enredos e a passagem da história. Mesmo que seja com alarme negativo acionado, é sempre bom ler o bom texto e colher alguma lucidez nesses tempos tacanhos.

Eu não canso de contar as coisas do dia a dia da biblioteca em que trabalho. É claro que acontecem coisas ruins que geram aborrecimento e decepção.

O fato é que eu procuro me ater às coisas bacanas e mesmo àquelas que me fazem pensar e questionar as minhas convicções e verdades.

Muitas vezes as grandes sacadas e revelações veem nas coisas prosaicas e nos encontros que num primeiro momento parecem simples e sem expectativas.

Hoje por volta das 19h eu estava no setor de atendimento trocando uma ideia com o Maurício que é operador de som. Bem pra lá do balcão, um rapaz nos aborda:

– Boa noite, tem sala de música aqui na biblioteca?

– Como assim sala de música? – devolvi a pergunta querendo entender melhor.

– É que eu vi aquele piano ali e achei…

Eu já falei desse piano aqui em outro post, ele fica lá disponível pra quem quiser tocar.

– Ah sim, o piano tá ali, mas não temos uma sala de música, a prefeitura promove oficinas de música, mas é em outro endereço – respondi burocraticamente.

O rapaz perseverou:

– Posso tocar um poquinho?

– Claro, você sabe tocar? – perguntei de um jeito que poderia ter sido mais simpático.

Ele fez que sim com a cabeça e disse contente:

– Poxa, me parece um Fritz Dobbert!!

Ele não só acertou a marca do piano, como sentou e tocou…uma canção com toque bluesy, uma melodia bonita, singular, que encheu a biblioteca de beleza.

Me aproximei e perguntei:

– Que música é essa?

– É minha, não tem nome, eu compus há algum tempo, eu gosto de tocar, mas não tenho piano em casa, toco onde posso, tocava na casa de um amigo. Aprendi há três anos, de ouvido, sozinho.

Era um rapaz jovem e muito simples e só se explica a sua facilidade e desenvoltura diante do piano pelo talento. Eu não tenho capacidade técnica de aferir qualidade musical, mas ouço canções há cinquenta anos, era muito bonito aquilo que ouvi.

O rapaz foi embora e prometeu voltar pra praticar, sorriu contente como sorriem os geniais ingênuos. Eu fiquei ali entre embasbacado e envergonhado pelo ceticismo inicial. E foi mais um dia bom na biblioteca.

Nos últimos dias tenho lido muitos amigos e conhecidos das redes descrevendo seus sonhos. Coincidência ou não, a pauta onírica alheia tem cruzado meu caminho.

Engraçados, trágicos, enigmáticos, essa descrições dos sonhos dos outros, me fazem lembrar o quanto de tempo que eu não lembro dos meus próprios sonhos.

No campo de revelação do sonho alheio, guardo comigo uma história marcante.

Há uns quatorze anos atrás, eu trabalhava na Gibiteca Municipal aqui em São Bernardo. Atendia, atinava umas ações culturais e interagia com um público diversificado que curtia quadrinhos e diversos nichos da cultura pop.

Foi um tempo rico de conhecer personas, seus gostos e manias. Muitos adolescentes de idade e espirito, entusiastas com o lado fantástico do universo. Uns expansivos, outros tímidos, todos com histórias e experiências que aos poucos eu fui conhecido e vivenciando.

Entre eles havia um rapaz tímido que pouco falava. Ficava horas nas mesas da Gibiteca lendo revistas, pouco interagia, um meneio de cabeça era o bom dia, outro era o até logo. Demorei um bom tempo pra ouvir sua voz. Muitas vezes ele se mimetizava entre os heróis Marvel e DC que lhe tomavam a atenção.

Numa das manhãs quaisquer de trabalho, ele entrou bem perto da hora que abrimos, meneou a cabeça de sempre, pegou um gibi e escolheu uma mesa. Até ali o normal. Cinco minutos depois ele se aproximou do balcão e lançou as primeiras palavras completas que ouvi da sua boca:

– É possível parar de sonhar?

Fiquei surpreso com pergunta, pela forma inusitada em que ela veio e por minha incapacidade de dar uma resposta. Respondi com outra pergunta:

– Por que você quer saber isso?

Usei um tom amistoso, não queria espantar o raro diálogo, mas me senti impotente e despreparado diante de tão potente pergunta. Eu mesmo já havia me perguntado sobre o destino dos meus sonhos, visto que eles aparentemente sumiam, era um assunto que me interessava.

Um tempo de silêncio mútuo, mas ele continuou:

– Quando eu era menino eu sonhava bastante. Os sonhos vinham misturados com as coisas que eu lia, eram sobre os heróis, mas também sobre as coisas da escola e da minha casa. Todo dia eu sonhava e lembrava do que sonhava. Um dia isso mudou. Foi depois que meu pai sumiu.

Naquele momento eu dobrei a atenção na conversa, mas permaneci calado, embasbacado. Ele prosseguiu:

– Eu não parei de sonhar depois que meu pai sumiu, mas os sonhos diminuíram muito e eu não lembrava mais como eles tinham sido. Por um tempo, no meio de algo que parecia sonho, eu acordava de madrugada assustado e ouvia meu pai tocando violão. Na real, meu pai não possuía e nunca havia tocado um violão. Logo depois da música parar eu adormecia, o aparente sonho tinha a duração de uma canção.

Fiquei meio atordoado com a súbita eloquência do rapaz tímido e com a beleza triste da história. Pensei em perguntar coisas e tentar entender melhor a história. Estranhamente me calei, decerto, para deixar o rapaz livre pra falar o que quisesse ou calar.

– Depois de um tempo todos os sonhos sumiram. Nem meu pai, nem o violão apareciam na madrugada. Quando eu acordava de madrugada era apenas um silêncio.

– Você nunca mais viu seu pai?

– Não, não o vi mais…

Foi a única pergunta que consegui fazer. A resposta pedia uma sequencia, a história deixava muitas lacunas importantes.

Nunca soube ao certo, se o pai daquele rapaz havia morrido ou sumido de casa. O fato é que aquela foi a nossa única conversa para além dos meneios. Desde então, nem eu,nem ele, tivemos qualquer ímpeto de continuar aquele dialogo. Bastou.

Passou o tempo e as visitas daquele rapaz à Gibiteca, foram rareando, até que ele sumiu de vez. A história e a pergunta do sonho ficaram sem fim e sem resposta.

A única coisa que ficou da lembrança dessa historia no trabalho, foi a impressão de que o pai daquele rapaz tímido tocava e cantava Blackbird dos Beatles naquelas madrugadas de adeus.

Sinceramente, eu não sei se eu inventei ou se eu sonhei essa trilha, mas ela persiste até hoje como se fosse uma verdade sonhada.

Fico pensando se aquele rapaz viu seu pai novamente, ou se ao menos voltou a sonhar

Blackbird singing in the dead of night

Take these broken wings and learn to fly

All your life

You were only waiting for this moment to arise

You were only waiting for this moment to arise

Nós carregamos orgulhos bestas. Eu tenho os meus, confessáveis ou inconfessáveis.

O acaso, o labor, as afinidades eletivas, as nossas agendas, as escolhas promovem nossos orgulhos bestas.

Um dos meus, por demais confessável, foi ter nascido um mês e cinco dias antes do lançamento do álbum Revolver, o sétimo dos Beatles.

No dia 05 de agosto de 1966, as rádios do mundo puderam tocar aquelas canções, Taxman, Eleanor Rigby, Yellow Submarine, For no One, Doctor Robert, I Want Tell You…Tomorrow Never Knows.

A Beatlemania gerou uma série de lendas, opiniões, máximas e mínimas sobre os componentes, as canções, as inovações estéticas e políticas, os suportes técnicos, etc. Todas elas eivadas de gostos e birras pessoais.

Revolver foi a virada dos Beatles, o perfeito registro que expressa a segunda metade da década de 1960. Couberam ali o soul music, o psicodelismo, as drogas, as mazelas e os benefícios do pós guerra.

George Harrison e Ringo Star – so we sailed on to the sun – irromperam ao mundo no Revolver. O Fab foi de fato Four naquelas gravações. O engenheiro de som, Geoff Emerick foi feliz ao entender a necessidade tecnológica de cada canção. O verdadeiro sentido do titulo do álbum, mover, fazia muito sentido naquele 1966.

Vem daí, o orgulho besta do nascimento à sombra dessa passagem da industria cultural, que da maneira possível determinou o que seria feito dali em diante na música popular no mundo.

Eu cresci ouvindo aquelas canções todas, aprendi a gostar de Paul mais do que gostava de John, para depois descobrir George, então entender melhor John, valorizar Ringo, para por fim, admiti-los como um conjunto indissociável.

Me orgulho desse confessável orgulho besta.

E faz 52 anos nesse domingo…

O Centro de São Paulo me é muito familiar. As ruas, as pessoas, o comércio, os lugares clássicos. Há anos eu venho palmilhando seus quadriláteros.

Desde a adolescência gosto de andar na 24 de maio, 7 de abril, Barão de Itapetininga, de preferência no cair da tarde de sábado.

O fim do expediente, dos encontros, hora que a cidade relaxa, esquece um tiquinho o jogo da vida.

O Centro tem seu cadinho de gentes, negros, brancos, índios, mestiços de todos os timbres.

Hoje, 2018, ainda mais panamérica de áfricas diversas, com os nigerianos, os bolivianos, e os vários sotaques.

As lojas fecham, os trabalhadores, as trabalhadoras, vão ao encontro dos seus pares, dos amigos, da solidão, os bares ganham a luz dos diversos sotaques.

Até o SESC 24 de maio, que nas unidades dos bairros da classe média tem frequentadores diferentes, por ser no Centro, tem um público popular, diverso, atípico.

Hoje, por volta das 18:30, parei ali pra tomar um café, e na mesa do lado, um grupo trocava ideias comendo bolo e tomando café.

O assunto era a noite de sábado, cada um com seu plano: família, o forro pra dançar, a igreja, o namoro. Cada cor, cada sotaque, cada vida diferente. As micro histórias da gente dessa terra.

Eu fiquei ali ouvindo a vida alheia. O meu café nunca acabava. Tarde de voyeur dessa gente do centro, que divide comigo, as ruas que eu gosto de andar, e dá sentido pra essa tarde qualquer.

Lá em frente a Galeria Presidente assistia tudo…

Em 2001 eu mudei pro centro de SBC, no prédio onde moro até hoje.

Do meu lado direito, em três apartamentos contíguos, moravam três vizinhos maravilhosos. Duas irmãs de origem russa, Maria e Vera, viviam no 82 e 81 respectivamente e no 80, experiente e histórico ator e dramaturgo da cidade e grande figura humana, Sergio Rossetti

Vera e Maria pareciam muito aquelas vovós de contos infantis, cabelinho branco como algodão, as falas espirituosas e mordazes de Vera, a irmã mais nova, a diferenciava de Maria, constantemente dócil e terna. Além da plasticidade, tinham histórias da longa vida e se orgulhavam disso.

No canto do corredor, Sergio anunciava o dia com falas irônicas e vigorosas, nas quais as diatribes políticas prevaleciam, eu quase sempre discordava, mas a fraternidade de vizinho e demais afinidades, amansavam os dialogos.

Maria, octogenária, costumava contar historias do pai, que fôra da guarda do Czar, e sempre me oferecia café e alento. Muitas vezes percebia meus silêncios e ausências e vinha perguntar o que o ocorrera. Afinidade eletiva.

Vera, mais pragmática, não gostava de lembrar da velha Russia, as suas falas comigo sempre remetiam à Vila Euclides, onde conheceu meu avô e meu pai, pois era esposa do dono do bar da Avenida Nações Unidas.

No meu corredor sempre se ouvia as vozes de Maria, Vera e Sergio. Um mundo de cores, lembranças e presenças diversas. Hoje, percebo e sinto melhor a riqueza daquelas historias.

O tempo passou e vieram mudanças e perdas. Eu mudei de andar, do oitavo pro nono, mas sempre os visitava. Porém, as distâncias foram crescendo.

Maria faleceu pouco tempo depois de ter perdido o filho mais novo e um neto, desgostosa viveu um melancólico final de vida, a última vez que a vi, dei-lhe um longo abraço, despedida impensada e com a ternura que nos uniu.

Sergio se foi num trágico atropelamento por um ônibus, aqui, na Avenida Faria Lima que ele tanto percorreu. Foi numa manhã de sábado, em frente ao Correio. A memória não me ajuda, mas posso ter ouvido Sérgio naquela manhã antes do acidente, mesmo não estando mais no andar, de tão poderosa que foi sua voz em vida.

Restou Vera. A vida mudou, fiquei longos períodos fora do prédio, vinha pra dormir e saia de manhã. Morei três anos e meio em São Paulo. Voltei em 2016 e divido a semana na ponte aérea SBC/Barra Funda. Nem lembrava mais do corredor.

Ontem, revi Vera saindo do elevador.

– Taí o Ricardo, neto do Seo Pedro, o menino gordinho da Velha Euclides.

Sorrimos. Ela mais velhinha, cabelo de algodão como a saudosa irmã Maria. Eu, com mais histórias. Vê-la, me fez lembrar do corredor, das manhãs, das falas do Sérgio, do café cheiroso, dessas coisas que têm muito valor.