Nos últimos dias tenho lido muitos amigos e conhecidos das redes descrevendo seus sonhos. Coincidência ou não, a pauta onírica alheia tem cruzado meu caminho.
Engraçados, trágicos, enigmáticos, essa descrições dos sonhos dos outros, me fazem lembrar o quanto de tempo que eu não lembro dos meus próprios sonhos.
No campo de revelação do sonho alheio, guardo comigo uma história marcante.
Há uns quatorze anos atrás, eu trabalhava na Gibiteca Municipal aqui em São Bernardo. Atendia, atinava umas ações culturais e interagia com um público diversificado que curtia quadrinhos e diversos nichos da cultura pop.
Foi um tempo rico de conhecer personas, seus gostos e manias. Muitos adolescentes de idade e espirito, entusiastas com o lado fantástico do universo. Uns expansivos, outros tímidos, todos com histórias e experiências que aos poucos eu fui conhecido e vivenciando.
Entre eles havia um rapaz tímido que pouco falava. Ficava horas nas mesas da Gibiteca lendo revistas, pouco interagia, um meneio de cabeça era o bom dia, outro era o até logo. Demorei um bom tempo pra ouvir sua voz. Muitas vezes ele se mimetizava entre os heróis Marvel e DC que lhe tomavam a atenção.
Numa das manhãs quaisquer de trabalho, ele entrou bem perto da hora que abrimos, meneou a cabeça de sempre, pegou um gibi e escolheu uma mesa. Até ali o normal. Cinco minutos depois ele se aproximou do balcão e lançou as primeiras palavras completas que ouvi da sua boca:
– É possível parar de sonhar?
Fiquei surpreso com pergunta, pela forma inusitada em que ela veio e por minha incapacidade de dar uma resposta. Respondi com outra pergunta:
– Por que você quer saber isso?
Usei um tom amistoso, não queria espantar o raro diálogo, mas me senti impotente e despreparado diante de tão potente pergunta. Eu mesmo já havia me perguntado sobre o destino dos meus sonhos, visto que eles aparentemente sumiam, era um assunto que me interessava.
Um tempo de silêncio mútuo, mas ele continuou:
– Quando eu era menino eu sonhava bastante. Os sonhos vinham misturados com as coisas que eu lia, eram sobre os heróis, mas também sobre as coisas da escola e da minha casa. Todo dia eu sonhava e lembrava do que sonhava. Um dia isso mudou. Foi depois que meu pai sumiu.
Naquele momento eu dobrei a atenção na conversa, mas permaneci calado, embasbacado. Ele prosseguiu:
– Eu não parei de sonhar depois que meu pai sumiu, mas os sonhos diminuíram muito e eu não lembrava mais como eles tinham sido. Por um tempo, no meio de algo que parecia sonho, eu acordava de madrugada assustado e ouvia meu pai tocando violão. Na real, meu pai não possuía e nunca havia tocado um violão. Logo depois da música parar eu adormecia, o aparente sonho tinha a duração de uma canção.
Fiquei meio atordoado com a súbita eloquência do rapaz tímido e com a beleza triste da história. Pensei em perguntar coisas e tentar entender melhor a história. Estranhamente me calei, decerto, para deixar o rapaz livre pra falar o que quisesse ou calar.
– Depois de um tempo todos os sonhos sumiram. Nem meu pai, nem o violão apareciam na madrugada. Quando eu acordava de madrugada era apenas um silêncio.
– Você nunca mais viu seu pai?
– Não, não o vi mais…
Foi a única pergunta que consegui fazer. A resposta pedia uma sequencia, a história deixava muitas lacunas importantes.
Nunca soube ao certo, se o pai daquele rapaz havia morrido ou sumido de casa. O fato é que aquela foi a nossa única conversa para além dos meneios. Desde então, nem eu,nem ele, tivemos qualquer ímpeto de continuar aquele dialogo. Bastou.
Passou o tempo e as visitas daquele rapaz à Gibiteca, foram rareando, até que ele sumiu de vez. A história e a pergunta do sonho ficaram sem fim e sem resposta.
A única coisa que ficou da lembrança dessa historia no trabalho, foi a impressão de que o pai daquele rapaz tímido tocava e cantava Blackbird dos Beatles naquelas madrugadas de adeus.
Sinceramente, eu não sei se eu inventei ou se eu sonhei essa trilha, mas ela persiste até hoje como se fosse uma verdade sonhada.
Fico pensando se aquele rapaz viu seu pai novamente, ou se ao menos voltou a sonhar
Blackbird singing in the dead of night
Take these broken wings and learn to fly
All your life
You were only waiting for this moment to arise
You were only waiting for this moment to arise