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Arquivo mensal: dezembro 2010

Festas de final de ano sempre acabam pegando a gente por algum lado. Pela alegria, pela tristeza. Pelo desejo de estar junto e pela saudade de quem se foi. Inevitável.

Há 15 anos, no dia 27 de dezembro de 1995, meu mano Davi nos deixava. Relutei em escrever isso no blog, o exercício de autodefenestração, mesmo em plena era do fim da privacidade, ainda é muito duro. A barra era pesada, ele contraiu HIV em meados da década de 80, duro para família, mais ainda para ele. Desconhecimento, preconceito, ignorância, são adjetivos autoexplicáveis para aquele momento. Idas e vindas em hospitais públicos, entremeados com clínicas de recuperação, descaso, família sumindo lá longe no horizonte, olhares desconfiados, julgamentos, desprezo.

O curioso à época, e hoje tão óbvio, é que depois de revelada a doença a aproximação entre eu e ele foi maior. Era o laço que prevalecia. Antes, ele era o irmão mais velho que fazia tudo para não ser incomodado pelo mais novo. E o mais novo incomodava. Eu queria saber tudo, da música, do futebol…da vida. Ele era do samba, eu era do rock, ele era bom de bola, eu perna de pau. Ele era Corinthians, eu Lusa. Ele era tortuosamente o herói. E naquele momento precisava ser incomodado e descoberto o quanto mais fosse possível.

Os sambas que ele ouvia nas nossas vitrolas, Roberto Ribeiro, Martinho da Vila, João Nogueira, Originais do Samba, Partido em Cinco, os seus sumiços para o Rio de Janeiro e outros locais em viagens até hoje para mim intrigantes. Ele foi ver, por exemplo, a semifinal do Brasileirão entre Corinthians e Fluminense (a famosa invasão corintiana no Rio) em 1976. Morri de inveja, não pelo jogo, mas pela aventura.

A facilidade que tinha com os instrumentos de percussão: repinique, pandeiro (que ele dizia enrolar), surdo de marcação, tamborim (que ele dizia dominar e dominava). As incursões pelas escolas de samba de São Bernardo e da zona sul paulistana (Ipiranga, creio). .Eu tocando no máximo guitarras imaginárias.

As manhãs da várzea de São Bernardo do Campo, onde ele jogava no meio de campo, armando jogadas e chutando de fora. Eu nos arrabaldes do campo sonhando em poder um dia poder jogar assim. Nunca joguei. Saía antes para casa, vagabundeando as manhãs de domingo mais deliciosas de minha infância.

Hiato.

Depois o escuro, a separação, vivendo ali no mesmo espaço e indo para lados diferentes. O sonho conjunto de irmão se desfez em pesadelos e distanciamento. Opções. Drogas Pesadas, que ao longe parecem ter glamour e de perto acabam esgarçando pontos de aproximação, desfazendo laços. Não quero transformar isso aqui numa peça do Coronel Ferrarini. Mas dói. E a conta veio.

Nos últimos três anos da vida do meu irmão, batíamos longos papos pela madrugada, nostálgicos, de coisas que eu não lembrava, de coisas que ele parece ter esquecido. Daquele tempo de admiração, da música, do futebol, voltando aos poucos no tempo que urgia. Músicas, histórias do futebol, as tiradas engraçadas que ele criava, sempre sarrista, os personagens imaginários baseados em pessoas reais, vizinhos, parentes, amigos. A vida oculta nos subúrbios distantes. Eram divertidas as madrugadas.

A última vez que eu vi meu irmão foi no corredor do Hospital Emilio Ribas, era dia 26 de dezembro de 1995, ele tava ali na maca, e eu bravo reclamava por terem o deixado lá. Ele disse (defendendo o enfermeiro) que havia pedido para ficar no corredor. Perto da janela, e mostrou que dali podia ver as árvores da Avenida Dr Arnaldo, e que daquela imagem vinham lembranças dos trajeto a pé que fazia para ver o Corinthians no Pacaembú.

No dia seguinte, a tarde, ele faleceu. Foi enterrado com a camisa do Corinthians. Três meses depois chegava ao Brasil o coquetel e muitos que estavam ali perto dele naquelas macas conseguiram mais vida.

Durante muito tempo não conseguia falar disso, agora coloco aqui, provavelmente para pessoas que não conheço. Com dor, claro, e sem falsa resignação, mas conto porque esta história tem uma parte bonita, e a dor vai estar aqui, mesmo que eu não conte.

O blog fala de música, e aí vão duas canções que meu irmão gostava muito. Legado de sambas que ele me deixou.

Valeu brother!!!

Noites atrás papeando com a Pih Morais (boa amiga de Curitiba), e ela começou a me contar algumas histórias do guitarrista e violonista Waltel Branco. Waltel mora próximo dela, e vez em quando eles compartilham um taxi de volta para casa, invariavelmente, saídos de noites musicais. Waltel não é apenas amigo de uma amiga. Waltel é simplesmente mais um músico genial esquecido pelo Brasil. A música e o músico tão laureados no país, são também facilmente esquecidos. Esta retórica já encheu, não? Então, vamos aos fatos.

Waltel nasceu na cidade de Paranaguá, em 1926. Envolvido com música desde sempre, foi tocar em Cuba e EUA no final da década de 40. Integrou a banda do batera Chico Hamilton e ladeou Perez Prado, Mongo Santamaria. Estudou violão na Espanha com Andre Segóvia. Foi um dos bruxos formadores da bossa nova, dentre os que que não receberam os lucros. Maestro, violonista, arranjador, fez trilhas de filmes, tocou com pseudônimos (Airto Fogo por exemplo), música de novela, swingou, harmonizou, colocou violão e guitarra nos sulcos mais improváveis e nos mais selecionados. Mas o importante é que Waltel esta vivo lá em Curitiba, esperando para ser homenageado, valorizado, lembrado e reconhecido, e como dizia o Nelson Cavaquinho:

Sei que amanhã
Quando eu morrer
Os meus amigos vão dizer
Que eu tinha um bom coração
Alguns até hão de chorar
E querer me homenagear
Fazendo de ouro um violão
Mas depois que o tempo passar
Sei que ninguém vai se lembrar
Que eu fui embora
Por isso é que eu penso assim
Se alguém quiser fazer por mim
Que faça agora.

O Waltel ta aí e sua música em belos e variados registros. De vez em quando ele pega o taxi com a Pih Morais para voltar para casa. Waltel e sua música, não precisa de compaixão, nem frases piegas, esta lá prontinho pro Brasil ser um pouco menos hipócrita.

Domingo, tarde quente, um sem vento lá fora, casa de luzes apagadas e a música de Ronnie Lane incensando o ambiente. Neste post eu não vou esclarecer a carreira de Ronnie Lane e nem vou falar o quanto ele sofreu. Fica para outro post. Neste momento agradeço a Ronnie e a um sem número de fazedores de canções, a companhia que faz dançar o vento, mesmo quando ele, nesta tarde de falta de vento, não esta.

O poema deve ser feito treinando, treinando, treinando…Ou como Benedito Nunes disse: lendo, lendo, lendo, lendo …

Max Martins

O funcionário público Max Martins, nasceu em Belém do Pará, no ano de 1926. Nasceu e viveu longe do centro(!?), no norte do Brasil e quando acusamos um centro, desobrigamos o que não esta no centro. Ainda bem que aparecem contrários de tudo quanto é lado. Max foi atrás da palavra, poeta antes de funcionário público , que não veio para o Rio, nem para São Paulo, então pouco conhecido, mas sempre, poeta. Foram cerca de 12 livros (tirante antologias e um volume de poesia completa), poeta, firmemente do Norte do Brasil, mas da palavra que se deslocou da localidade. Max faleceu em 2009.

Rasuras

Meu nome é um rio
Meu nome é um rio que perdeu seu nome
Um rio
nem sim
nem não
Nenhum
Somenos correnteza
Água masturbada em vaus
peraus
em po
luído orgasmo entre varizes
Sêmen sem mim
Mesmice
Onde está meu nome Lá neste rio de lama sem memória e
rumo?
Neste amarfanhado leito de inchada falha?
Meu nome é um rio cotoco – um Ícone
De barro
barroco
Um rio que só se-diz
Seduz-se
Se afaga e afoga
em ego e água: Aquário
Meu nome é um rio tapado
(poço)
E aqui se quebrantou meu nome
sua viagem e osso
É esta a sua fissura? E o seu rosto é este
escuro
atrás da porta
espelho
exposto à febre
à fera de si mesmo?
Ensimesmado
meu nome é um rio que não tem cura

Quando era menino jogava futebol por pura insurgência. Insistia. O corpo decerto não adequado, gordinho, a pouca habilidade com as leis da bola dificultava mais ainda. Mas jogar era uma forma de se inserir, de ser aceito, ainda que não fosse a forma mais fácil. Com poucas variações era escalado no gol e lá ficava.

O universo do futebol era muito presente. De olho comprido olhava as capas da revista Placar nas bancas, a grana nem sempre dava, mas adorava ver o Tabelão e decorar as escalações dos times. Sabia até a escalação do Confiança de Sergipe. Década de 70 do século passado. A maior das teimosias foi na escolha do time. Estão bem claras na minha mente  as conversas que tinha com o meu irmão sobre times e escolhas. Todo mundo torcia para o Corinthians (meu irmão incluso), São Paulo, Palmeiras e Santos.

Fui torcer para a Lusa, por causa do craque Eneás, já contei essa história aqui no blog: https://klaxonsbc.wordpress.com/2008/09/24/rei-eneas-um-genio-esquecido%E2%80%9D/ e provavelmente por uma teimosia. Era uma lei da época, acho que ainda vigente, que uma vez torcedor de um time nunca se muda, ou melhor jamais se vira bandeira.

Por mais que jogar fosse algo cheio de dificuldades, as tardes e manhãs de futebol eram sempre prazeirosas. Lembrar disso e não ter glórias de gols e jogadas sensacionais para contar, não é uma manobra de autoindulgência, mas sim uma forma de compartilhar a importância de atos cheios de mágia que se constroem nas minúcias.

Futebol na chuva, futebol na rua de ladeira com gols improvisados, futebol na madrugada, futebol ao cabular aula, futebol dentro de casa sob os protestos da mãe, futebol de botão. Lembro de alguns amigos que jogavam bem, outros pernas de pau como eu, uns solidários, outros “fominhas”. Craques, poucos, como sempre.

E tinha o futebol no rádio, as tardes de domingo, as transmissões. Locutores,  repórteres de campo, comentaristas, os plantões esportivos. Joseval Peixoto, Fiore Gigliotti, Osmar Santos, Flávio Araújo, Leonidas da Silva, Flavio Adauto, Ligeirinho, Cândido Garcia, Edemar Annuseck, Luis Augusto Maltoni, Narciso Vernizzi, Paulo Edson, Mauro Pinheiro, Cláudio Carsughi, Randal Juliano, Orlando Duarte, Fausto Silva …e por aí vai, e claro, esqueci vários nomes.

E, especialmente, havia o Show de Rádio  dirigido e criado por Estevam Burroul Sangirardi, com seus personagens satíricos, transmitido na Rádio Jovem Pan e na Bandeirantes (em épocas diferentes) sempre ao final das partidas (sobre esse programa pretendo um dia dedicar um post). Longas tardes/noites de domingo.

As coisas vão mudando de cor e intensidade e o futebol foi perdendo espaço na minha vida. Hoje acompanho mal e mal a Lusa, e vejo os gols no youtube ou nos portais esportivos. O peso e o simbolismo, claro, ainda existem. Na ausência de conversa mais convincente nas rodas de trabalho e horas triviais, o futebol se apresenta como alternativa,  mesmo com pouco repertório.

Sempre que cai uma chuva dessas de tarde de verão e ao longe vejo um grupo de moleques chutando uma bola heróicamente, bate uma saudade, saudade gostosa, saudade de gols não feitos, de dribles não dados, de jogos que torcia para que nunca acabassem…

Eu relutei em usar esta imagem, mas de longe é a mais perfeita para ilustrar este post. Trata-se de um registro de vários olhares intrometidos de meninos querendo assistir de fora um jogo no Pacaembú na década de 40. A imagem faz parte do livro “Pacaembú” (Editora DBA – 2008) que reúne fotos de húngaro-brasileiro Thomas Farkas. Se alguém conhecer o autor, e se esse sentir-se lesado pela utilização da mesma, retiro de pronto. Gosto bastante da foto e parece até que procurava escrever um post para colocá-la.

No século do progresso
O revólver teve ingresso
Pra acabar com a valentia

(trecho de Século do Progresso – Noel Rosa – 1934)

Tamanho do disco: 285 GB (307.071.889.408 bytes), 64.327 arquivos em 6117 pastas. Criado na segunda-feira, ‎10‎ de ‎agosto‎ de ‎2009, ‏‎11:39:55h. Não estranhem, eu não acionei algum comando que transferiu esses dados acidentalmente para o post, esses dados se referem ao tamanho da pasta de música do meu pc. Vocês acham que eu estou querendo me arvorar da quantidade ou querendo  colocar à disposição da RIAA (Recording Industry Association America) dados para um processo? Nada disso. Em pouco mais de um ano acumulei todos esses arquivos. Adquiri esse pc ano passado. Só que a história vem de muito antes, final de 1999.

Em 1983 o The The, banda inglesa de um componente só, protagonizada por Matt Johnson, lançava o álbum Soul Mining, logo depois uma das faixas desse disco virou hit nas casas noturnas da época. No Madame Satã quando tocava Uncertain Smile – versão 45 (remix) a pista se enchia das figuras que ali frequentavam, alias essa era uma das músicas que pluralizava a pista. O remix ouvido hoje soa meio tosco, com os loops (recursos de colagem musical) e sobreposições que atualmente parecem rudimentares. O disco era uma lenda, alguns djs o possuiam, e rolava uma conversinha de bastidores sobre a possibilidade de conseguir uma cópia em fita cassete. Era 1984. Um momento apropriado para colecionadores exclusivistas, que de alguma maneira tinham acesso a discos e gravações (não esqueçamos que estes foram a base da grande coleção virtual que estaria por vir). Para a maioria o jeito era se contentar a ouvir algumas coisas nas pistas, milagrosamente gravar algo em programas de rádio ou ter amigos colecionadores e generosos (coisa rara).

Não cheguei a pegar esse remix, bolacha na mão. O registro que consegui foi numa calejada fita Scotch que funcionou até a estafa e definhou. Ficou como peça de colecionador. Vamos cortar para uma noite qualquer de 1999. Num bate papo da vida (chats à época) conversando sobre música, alguém me falou de um programa chamado Napster. Estranhei o nome, estranhei também o objetivo. Baixar músicas para o computador. A possibilidade não era tão improvável. Mas como funcionava isso? Com dificuldade consegui o programa, não a dificuldade de achá-lo no mundo virtual, mas sim de conseguir baixá-lo, já que a conexão discada, unico recurso de então, transformava todo download numa longa novela venezuelana. O Napster veio, com ele as interrogações e uma certa incredulidade. Era o P2P invadindo a minha vida, presente de Shawn Fanning, um garoto de Massachussets. Antes disso a revolução compressora do MP3 (MPEG-1/2 Audio Layer 3) pelo MPEG (Moving Picture Experts Group) em 1995, pavimentaria o caminho.

Foram vinte e três minutos e duas quedas de conexão ( e os devidos reinícios), ainda por cima uma procura pelo destino do arquivo, pois não configurei o destinação da pasta. Achei a past music e nela os mais de 9 minutos e tantos bytes da canção perseguida. Era o meu primeiro MP3 arquivado. Fim de uma era, começo de outra? Não vou ficar especulando sobre relevâncias e revoluções. O fato é que aquela noite mudou minha relação com a música, e claro, com a maneira de acessá-la.

O momento imediatamente posterior foi de euforia. Cada música que vinha para a HD trazia consigo um corolário de lembranças e histórias e principalmente de desejo reprimido (rs). A coleção foi aumentando, e os nomes dos programas P2P modificando: Kazaa, AudioGalaxy, Morpheus…nesse tempo todo foram algumas HDs, milhares de arquivos, solos, canções, barulhos, melodias… O intervalo entre ouvir falar e ouvir uma banda , música ou lançamento foi se estreitando até o limite. No momento ouvimos músicas até antes dela serem lançadas. A instantaneidade venceu a exclusividade, os colecionadores e preciosistas lamenta(ra)m o final do latifúndio improdutivo. Compartilhar é a tônica, legal ou ilegalmente.

Como disse no início, tenho nesta data mais de sessenta e quatro mil músicas em meus arquivos, confesso que parte dela não consegui ouvir, talvez nem o faça. A primeira delas tem o sentido totalmente diferente do que tinha quando a ouvia nas pistas dos inferninhos oitentistas, e também, no momento do primeiro download. Este é um retrato direto e sem maneirismos da presença da tecnologia em nosso universo sensível. A velocidade, a mudança e os regozijos de acessar com rapidez o que gostamos e descobrir coisas novas. As bases dessa história são as canções e a liberdade que existe e deve ser preservada e ampliada na rede, a matéria prima que o progresso muda e  ao mesmo tempo preserva.