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Arquivo mensal: maio 2014

“No campo que nos concerne, o conhecimento surge como a luz dos relâmpagos. O texto é apenas o longo trovão que se segue.”

Walter Benjamin

O resgate de memórias não é necessariamente um ato de exaltação e culto ao passado, ele pode ser sangue e oxigênio a alimentar ações do presente e abrir novas perspectivas. Olhar para trás pode dizer bem alto que estamos aqui.

No início da década de 80 do século passado, a cidade de São Bernardo do Campo era dos palcos principais do Brasil, muito simples dizer isso hoje com mais de trinta anos passados, mas para um adolescente nascido e criado na cidade, os anos de 1979 e 1980 não eram apenas de greves e de detalhes do mundo do trabalho que colocariam a ditadura militar em colapso e abririam de fato “uma nova década” na história do Brasil, era muito mais.

O meu mundo era de sonhos e descobertas de música, de poesia, de um tempo que se abria em possibilidades, este “muito mais” pensando bem era uma confirmação da abertura política que se avizinhava, a mudança social confirmava o íntimo, o barulho das ruas com gritos de liberdade e luta por direitos ressoava nos meus hábitos secretos muito além do que eu entendia na época, o sangue e o oxigênio que pulsam hoje são claros nesse passado/presente.

Eu tinha quatorze anos em 1980, e neste tempo São Bernardo era uma cidade de “neblinas frias”, a temperatura e o meu já saliente temperamento me levavam para longas caminhadas pelas ruas e lá no íntimo da casa da Rua Ipiranga a ouvir sons, muita música, o que caia na minha mão, discos, fitas cassete, comprados, emprestados, compilados, rock barulhento, melodias que jamais esquecerei, como os romances de formação, as músicas que ouvimos em época de hormônios explodindo nos marcam fundo, nos perseguem, dizem e determinam a vida em notas.

Era o rock pauleira Slade, Status Quo, Sweet, Nazareth, Uriah Heep, Led Zeppelin, bandas inglesas, e claro, o tão influente, cantante e presente, e também inglês, punk rock. Depois soube, e isso não importa em nada, que o punk rock naquele 1980 já “morrera”, na brevidade dos produtos da industrial cultural, o punk já havia sido enterrado. Nada disso funcionava no Brasil, no ABC subúrbio industrial, província da provinciana São Paulo, o atraso de tempo, de consumo, tornava novidade o ontem das métropoles do primeiro mundo, o punk rock era uma das nossas novidades, era o novo que sorria junto á nossa adolescência.

Programas de rádio alimentavam o vácuo deixado pelo atraso nos lançamentos da industria cultural, na rádio Excelsior, hoje extinta, o dj Kid Vinil tocava as bandas que até hoje insistem em estar nas caixas de som da minha casa: Stiff Little Fingers, The Jam, Ultravox, Buzzcocks, The Stranglers, Damned…a lista é longa e o que legou para minha vida muito detalhado. Foram descobertas posteriores muito diversas, em grande medida determinadas pela mensagem estética e política marcada pela liberdade do punk rock.

As ruas, é nas ruas que desde ontem e sempre, me sinto vivo e atento, e foi nas ruas, naquelas das neblinas e garoas de São Bernardo, que pude ver e viver o Punk ABC, nunca fui punk de indumentária e de estar nas rodas, mas acredito que o punk e sua filosofia “do it yourself” me tocaram fundo. As ruas e as observações me disseram o que fazer, a música, o comportamento, a política, marcaram o jeito “punk” de eu levar a vida, dessa forma o punk sempre esteve comigo.

Conheci muitas lendas, vidas e histórias da época heróica do punk ABC, ficava nas praças, nos bailes, nas lojas, nos shows, quase invisível, um gordinho adolescente tímido e falador (pra disfarçar a timidez), aprendia, falava, trocava, entendia, desentendia, vivia tudo isso e todos esses verbos usados no passado podem ser transmutados para o presente. Não tenho como contar a história do punk ABC, mas conto como ela marcou a minha história.

O tempo mudou as ruas da minha cidade, os personagens mudaram, vieram outras décadas, outros símbolos, outros tempos estéticos, políticos, musicais, nem a neblina existe mais, supostamente saí das ruas, as escolhas que fiz na vida me levaram a trabalhar nos lugares consagrados da cultura: bibliotecas, centros culturais. Na certa nunca saí das ruas, levei o aprendido, a tensão delas para dentro dos lugares sagrados da cultura, demorei a entender, mas foi assim que na ação cultural, na política cultural, o “do it yourself” punk sempre esteve ao meu lado.

Usei a chance que as ruas, as neblinas, os amigos, as observaçoes, as dúvidas de adolescente, as descobertas da música, da literatura, da minha cidade, dos programas de rádio, do lirismo, da utopia socialista, da solidão que nos faz olhar o mundo com mais atenção, do punk, da necessidade de compartilhar e coletivizar valores, trabalhos e saberes,  do espírito ” do it yourself” que me ensinaram a fazer da vida a urgência do amanhã que se constrói na materialidade

São trinta e quatro anos passados e sempre quis contar esta história, mas creio que tampouco a entendia para contar, com tranquilidade há três meses juntamente com amigos no trabalho pude formatar a idéia, para mim catártica, de fazer o ciclo “Punk ABC: música, movimento”, juntamos forças e o convidamos os punks de verdade, reais da história e amigos longevos, Vlad e Miro, e assim se construiu mais esta ação cultural.

Ao contar a minha história penso que conto apenas uma das várias histórias ocultas de punks e pessoas influenciadas pelo “jeito punk de fazer”, o que temos de libertário e utópico que muitas vezes se oculta nos formalismos e obrigações da vida. Tudo isso marcou a maneira que vivo, observo, aprendo e atuo no mundo, agente cultural, bibliotecário cavando utopias e confusões e vivendo o tempo do meu tempo.

 

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Mas quieta em caverna escura sangra muda a humanidade,
Constrói de duros metais a cabeça redentora.

Georg Trakl

Não quero reduzir a minha indignação à lágrimas . Não quero transformar o momento numa peça publicitária das minhas escolhas políticas. Não quero ser mais sensível ou ser mais humano que o outro do outro do outro. E nem sei dizer basta, sabendo que não é basta que se diz em momentos como esse, não basta.

A morte é coisa que vemos diariamente, compulsóriamente as notícias batem nos nossos olhos. O espetáculo dantesco escorre dos palcos escolhidos e vem para perto de nós. Sofremos a dor da violência real e da sua naturalização, da sua reificação. A morte, a vingança, a satisfação de muitos que vêm a intolerância como arma, como modo de vida, nos entope os olhos, os ouvidos, o nariz.

A moça do Guarujá tinha filhos, marido, história, medos, erros, detalhes, tudo isso ignorado. Uma fofoca, recurso que é usado de forma costumeira para destruir reputações, pode também tirar vidas e tirou a vida da moça do Guarujá, linchada.

Linchamento patrocinado por estúpidos, por outras mãos que não só as que o fizeram cabal, por nefastos, por aberrações, atrocidade coletiva, construída diariamente, pedacinho por pedacinho com a força mágica da liberdade de postar, publicar e enunciar coisas nojentas e repulsivas, mas é a liberdade, e não é cercear a liberdade.

Morte construída pelas bravatas de apresentadores de tv, por sua retórica biliar que patrocina a morte substantiva, morte que transborda no modo que as pessoas recebem as mensagens e constrôem os próprios meios. Patrocinada por uma política construída no barro do medo, no apavoramento, na falta de reconhecimento do outro, na podridão, na barbárie. Arquitetadas em mídias variadas, TV, web, sem privilegiar essa ou aquela, o ódio e o que dá a liga.

A moça do Guarujá sangrou e nos deixou apenas com as palavras, a perplexidade e o medo (ele novamente) de estarmos indiferentes, de não mais nos chocarmos, de nos perdermos, de esperarmos o pior, e ignorar o pior quando ele já está, por parecer mais suave do que realmente é.

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