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Arquivo mensal: dezembro 2021

Quando me bate o silêncio sempre vem a música. A música que toca e a memória como legado musical. Muitas vezes a pergunta, fatal, difícil, de qual é a minha música preferida aparece não apenas pelo outro, mas dentro de mim.

Hoje eu respondo…como nos ensinou Gil Scott Heron:

“Could you call on Lady Day?
Could you call on John Coltrane?
Now, ‘cause they’ll, they’ll wash your troubles
Your troubles, your troubles, your troubles away!

All right”

Sim, Gil é John Coltrane o preferido e Naima a preferida.

Viva John Coltrane, Jim Garrison, Elvin Jones e McCoy Tyner, e todos os bons sons e efluvios.

Então, o que esperávamos?

O tal 2021 foi o que foi porque escolhas foram feitas, sendo nossas ou não. Foram muitas despedidas, muitas ausências, muitos choros silenciados, muitos gritos reverberados.

Construir esperança num quadro de violências é complicado. Mas quem ficou, aprendeu e segue perseverando. Não, nem todos, há quem se engane, há aquele que teime em ensurdecer a si e a quem mais possa atingir.

No fim, o que resta são alguns valores que construímos, o juízo que sobreviveu, tudo que nos ajuda a segurar a onda.

Agradeço no fim de um ano turvo, de triste Bahia e de muitas vidas sufocadas, às vozes que vieram me dizer coisas importantes e aos silêncios e ausências que me ensinam sempre sobre a inutilidade das ilusões. E que seja para construir a história do futuro com o que temos de melhor, mesmo que seja apenas o que restou.

Feliz 2022.

Há seis anos o mundo do rock and roll perdia um dos seus nomes mais autênticos. Ian Fraser Kilmister ou simplesmente Lemmy Killmister faleceu depois mais de cinquenta anos dedicados ao som pesado.

Desde os Rockin Vicars nos anos 60, passando por Sam Gopal, Hawkind, o combo da lisergia hippie londrino, tudo isso pra chegar no seu principal momento, em que junto com Phill Taylor na bateria e Eddie Clarke na guitarra, Lemmy empunhou o baixo Rickenbacker e soltou sua voz rouca para anunciar ao mundo:

“I guess I´ll see you all on the ice,
I should be tired,
And all I am is wired,
Ain´t felt this good for an hour,
Motorhead, remember me now, Motorhead alright”

Motorhead uma das principais bandas de rock and roll da história. Amada por várias tribos, punks, bangers, freaks, rockers. Um dia, Lemmy quando perguntado sobre  quem seria seu principal ídolo no rock’n roll não vacilou um segundo pra responder: Little Richard.

Viva Lemmy, viva Little Richard!!

Rock and roll never die.

Dia 27 de dezembro. Um emblema dos meus afetos. Dois camaradas, duas figuras icônicas da minha vida disseram adeus a esse mundo no dia de hoje. Em 1988 e 1995.

Em 1995, foi meu irmão, David, o cara que me fez amar o samba, que me fez entender que o ritmo e o canto negro é a base de tudo que importa em nosso país. O cara que me fez, ainda que pela negação, amar o futebol. Negação porque ele era Corinthians e eu Lusa.

E era do time do Canindé que vinha o outro camarada que marcou minha vida e se foi num 27 de dezembro de 1988, Eneas de Camargo. O elegante ponta de lança da Lusa. O artilheiro que fez 146 gols com a camisa rubro-verde, o cara que carregava a bola até o gol com dribles finos, sutil, o meu herói de infância.

O David vivia dizendo que o Enéas deveria jogar no Corinthians. Nunca!!

É incrível que depois desses anos todos eu nunca havia percebido que Davi Queiroz Pinheiro e Enéas de Camargo faleceram no mesmo dia. A comoção supera todas as datas. Não esquecerei jamais o impacto que causaram. As perdas do irmão herói e do atleta que fazia do esporte amado da infância e adolescência marcas inesquecíveis da educação sentimental.

Um salve ao David que me ensinou a respeitar o samba e as coisas simples mais profundas da vida, que determinam um jeito de ler o mundo e ao Enéas, que doou o êxtase dos dribles e dos gols que ficam grudados e estampados na memória e que definem um jeito de entender o jogo da vida.

Tudo isto vai comigo, espero, até os dias do fim.

Obrigado!!

Nos dias de Natal sempre me volta a lembrança de 25 de dezembro dos anos 80 (não lembro bem o ano), que nas minhas incursões radiofônicas eu me deparei com outro cara que não estava na comemoração de natal. Na rádio Excelsior, Kid Vinil, um dos heróis da minha adolescência, tocava tranquilamente e ao vivo sua lista de canções preenchendo a noite de Natal dos desgarrados.

Kid Vinil foi uma figura ímpar do cenário musical brasileiro do início dos anos 80. Desde os anos 70, ele que era funcionário da gravadora Continental, produzia e apresentava programas em rádios paulistanas, cuja trilha era o que de melhor havia de punk e new wave, estilos musicais emergentes e disruptivos no mundo que deglutia o fim das utopias. Além disso, logo depois, Kid montou suas bandas (Verminose, Magazine e Heróis do Brasil) e virou sucesso nacional com sucessos como “Sou boy” e a “Gata Comeu”.

Voltando à noite de natal com Kid Vinil. Das músicas que ele tocou lembro apenas da mais óbvia – “Fuck Your Mod”, uma paródia de “Jingle Bells”, clássico natalino, composta pelo Exploited, banda da segunda geração punk/hardcore inglesa – o detalhe instigante é que o Kid estava de fato ao vivo na rádio, ele passou aquelas horas de perús e cidras junto com os seus ouvintes, até tirando um sarro do natal. É o tipo de cumplicidade que necessitamos quando nos sentimos sós.

Na verdade, o que tocou naquela noite pouco importa (pode ser até que o Kid fingiu estar ao vivo), o que vale a lembrança é saber o como as coisas que a gente ama pode preencher vazios dolorosos de nossas vidas, um sopro fecundo que nos salva do ar rarefeito. Pode soar um tanto piegas, mas é impagável a sensação de proteção que os afetos nos concedem, a música sempre cumpriu o papel de dizer o que calava na minha vida.

A música, os amigos – muitos deles imaginários como foi o Kid Vinil naquela noite – o sonho coletivo de transformação, seguem preenchendo o vazio e algumas tristezas que a distância da infância e da adolescência soube transformar em ensinamento e otimismo. A vida ensina, ainda que a gente teime em dizer não.

Quero aproveitar e reiterar o meu agradecimento ao Kid Vinil, onde ele estiver, o meu amigo e dj particular daquela noite de natal dos anos 80. Hoje, uma (boa) lembrança.

Feliz natal, sobretudo, aos que não têm natal por opção ou pelas contingências da vida.

Em 19 de setembro de 1973 foi encontrado o corpo do cantor, compositor e professor universitário chileno Vitor Jara, assassinado covardemente pela ditadura do abjeto general Augusto Pinochet.

Meses depois, Joan Jara, a viúva de Victor, levou as últimas canções gravadas por ele ao estúdio Abbey Road, o que resultou no álbum póstumo chamado Manifesto, um dos símbolos da resistência à ditadura imposta aos chilenos.

A canção “El derecho de vivir en paz” – uma homenagem aos revolucionários vitienamitas, em especial ao líder Ho Chi Minh – é um dos legados deixados por Victor Jara que faz todo sentido nesse ano de 2021. Uma lembrança de quem resistiu, uma constatação de que a necessidade de ruptura cedo ou tarde chegará.

A Victor Jara, Ho Chi Minh e a todos aqueles que não se vergaram diante dos agentes do capital. É preciso não esquecer daqueles que abriram os caminhos.

“Poeta Ho Chi Minh
Que golpea de Vietnam
A toda la humanidad
Ningún cañón borrará
El surco de tu arrozal
El derecho de vivir en paz”

Num memorável samba lento de 1971, Paulinho da Viola pedia em versos:

“Hoje eu quero apenas
Uma pausa de mil compassos
Para ver as meninas
E nada mais nos braços”

É bonito porque é tão necessário pedir pausa, pra entender a vida, pra seguir dentro de uma paz possível. É um privilégio ter direito a pausas nesse mundo de ciclos contínuos quase nunca escolhidos.

O samba de Paulinho pede esse intervalo que revertido em coisas da vida é um luxo: a pausa para um respiro.

Um dia o saudoso o Raphael Rabello, grandioso violinista e cunhado de Paulinho da Viola, escreveu:

“Então, uma pausa de mil compassos é um silêncio que tem uma duração indeterminada, que cria o espaço que dá sentido ao som”

Digo: pois é, faz todo sentido uma pausa de mil compassos para dar sentido à vida.Tudo que peço agora é um samba lento.