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Arquivo mensal: junho 2018

Venho tentando reatar o costume de acordar cedo pra ler. A leitura das manhãs é sempre a melhor. O sono alivia as ideias, a leitura se torna mais atenta, mais produtiva. Meu pai costuma ler nas manhãs, copiei.

Acordei cedo hoje, mas não li nada. Até tentei, mas fui raptado por ver coisas do futebol. É dia de jogo da seleção. Revi o documentário “Lei do Passe” feito em 1974 pelo cineasta mineiro Oswaldo Caldeira. O tema: Afonsinho, o jogador que cruzou a linha da lei do passe.

Em 1971, Afonsinho que nasceu em Marília, no interior de São Paulo, jogava no Botafogo carioca e se revoltou contra o técnico Zagallo e os dirigentes. Cabeludo, barbudo era estigmatizado, mas sua principal rebelião não foi estética, foi política, contra a escravidão imposta pela pela lei do passe, que colocava o atleta como servo da cartolagem e dos clubes.

Afonsinho e seu pai, um trabalhador das ferrovias que se tornou advogado, foram à luta e ganharam da cartolagem, eles foram à justiça comum, driblaram a draconiana justiça esportiva, e de forma pioneira, o rebelde cabeludo adquiriu o passe livre. Apesar da jurisprudência, a lei do passe livre foi ratificada apenas em 1998, 27 anos após Afonsinho dar o primeiro chute.

O pioneirismo de Afonsinho diz muito sobre a relação do jogador de futebol com a indústria boleira. O hábil jogador mariliense era articulado, estudante de medicina, seu pai um operário engajado, ele tinha subsídios para enfrentar uma lógica exploratória e ainda venceu de forma apertada e provisória.

A maioria dos jogadores são provenientes das classes populares. Alguns poucos saltam de uma infância de precariedades para uma vida mais confortável, desses uma ínfima parcela atinge o estrelato. É curto o período entre a ascensão, o auge e o declínio. São rapidamente consumidos.

Afonsinho junto com Sócrates, Nei Conceição, Alex e outros poucos nomes, são exceções conscientes dentro de uma regra que coloca o jogador como sujeito sem voz, ator de palco com os bastidores vedados.

Reclamamos de atitudes heroicas dos jogadores de futebol, mas esquecemos que no fundo ele é um trabalhador, incomum, mas um trabalhador que, apesar dos casos isolados de pujança e ostentação, enfrenta os mesmos problemas da relação capital/trabalho.

Desde a vitória de Afonsinho em 1971, muita bola e grana rolaram nas canchas do mundo. As formas de exploração do ultraliberalismo se sofisticaram e o brilho do jogador serve a tantos interesses que uma batalha jurídica não bastaria pra minimizar a apropriação da arte de jogar. O capital não perdoa.

Da minha parte, sempre estarei do lado daquele que faz os gols no jogo jogado. Nos intervalos fazemos a luta da politica, sem querer ser perfeito…

“Dando um tempo, dando um jeito

Desprezando a perfeição

Que a perfeição é uma meta

Defendida pelo goleiro”

eu, sigo preferindo a imperfeição do gol.

Hoje começa a Copa da Russia.

Em 1970 eu tinha quatro anos, lembro pouco do Brasil campeão no México.

Meu irmão um dia me contou que eu fiquei alegre e que repetia o nome de Tostão pela casa. Foi meu jeito de comemorar.

A minha primeira Copa “consciente” foi a de 1974, a da Alemanha. A abertura foi no Estádio Olímpico de Berlin, 14 de junho, há exatos 44 anos. A equipe anfitriã enfrentava o Chile e foi naquele momento que comecei a ver Copas.

São muito nítidas as lembranças. Eram 11:00 do dia e a minha irmã tava arrumando a casa, eu improvisei um lugar na sala pra ver o jogo. Foi a primeira Copa transmitida a cores, mas eu vi o jogo sozinho na nossa velha Invictus preto e branca.

Claro que na tradição de ser gauche eu torci pro Chile, eram sulamericanos e supostamente mais fracos, foi fácil escolher. O cara bom do Chile era o Caszely, que tinha o bigodão tal qual o o Rivelino. Eu sabia que o Caszely era o bom do Chile, mas não sabia direito quem era o Caszely.

Logo, a Alemanha fez um gol, golaço. Breitner, um chutaço de fora da área. O bom da Alemanha, Gerd Mueller, não fez gol.

A minha estréia em Copa teve novidade, Caszely, o bom do Chile, foi o primeiro cara a ser expulso num jogo de Copa do Mundo. Aos 19 minutos do segundo tempo, ele revidou uma entrada violenta do alemão Vogts e foi pro chuveiro.

Aquele jogou acabou, a vida seguiu em várias outras derrotas e vitórias de Copas. Tempos depois, eu descobriria que os feitos daquele atacante chileno estavam muito além de ter sido apenas o primeiro expulso em uma Copa.

Caszely foi um jogador politizado, simpatizante do Partido Comunista Chileno, identificado com o Presidente Socialista, Salvador Allende, craque artilheiro do Colo Colo e ativo opositor do golpe impetrado pelo ditador Augusto Pinochet.

Em 1973, as vésperas da Copa e nos primórdios do golpe militar, a mãe de Caszely, Olga Garrido foi sequestrada e torturada pelos agentes da ditadura.

Pressão no ídolo do futebol, retaliação no cidadão progressista, o fato é que na despedida dos jogadores chilenos que partiam para a Alemanha, o ditador Pinochet deu o ar da sua desgraça e, contrariando o entusiasmo do capitão do time e apoiador da ditadura, Valdés, o valente Caszely se recusou a cumprimenta-lo.

Depois de ser expulso no primeiro jogo da Copa, Caszely foi detonado pela imprensa apoiadora da ditadura, sofreu boicotes em convocações e seguiu sua carreira jogando na Espanha, onde estava desde 1973. A ditadura tentou de tudo pra destruir sua carreira e vida, ele seguiu.

Em 1988, aquele que foi chamado o “El Rey del Metro Cuadrado” deu mais um golpe no golpe. Ele e sua mãe Olga participaram da campanha pelo “No” no plebiscito que decidiria a permanência ou não do ditador Pinochet no poder.

Foi relevante o depoimento da mãe e do filho para dar um fim aos cinzentos anos do Chile, assim como foram relevantes todos os gols e posicionamentos da carreira desse rebelde do jogo jogado. O não ganhou.

A Copa de 1974 foi a minha primeira. A Copa de 1974 teve como artilheiro o polonês Lato, a a campeã foi a Alemanha, o Brasil de Zagalo feneceu, a Holanda foi o futebol bonito, mas o herói sem gols e atemporal daqueles dias sombrios sempre será o Caszely.

Ser um moleque marrento dos anos 70 foi um dos motivos de eu ter escolhido a Portuguesa de Desportos como time do coração.

Eu queria contrariar o meu irmão corintiano ao mesmo tempo que procurava um time diferente pra torcer.

A Lusa era um time querido à época, tinha bons jogadores e carregava a mística de revelar, mas não segurar seus talentos.

Eu tinha de 6 para 7 anos, escolhi. Time escolhido na infância, é time pra vida toda.

Foi assim que cresci e vivi o futebol. Sem identificação especial com a colônia portuguesa, mas torcedor de arquibancada , de ir ao Canindé e acompanhar com resiliência as parcas glórias e as muitas agruras.

Torcedor de time sem título aprende a valorizar as centelhas de poesia.

Lusa pra mim é Eneas Camargo, Dicá, Dener, Zé Roberto…e outros tantos jogadores que coloriram algumas tardes e noites…

Cultura de futebol era no estádio que se consolidava, conheci gente bacana nas arquibancadas.

A Lusa foi engolida pela lógica corrosiva do futebol globalizado, mas a história que vivi nesses anos ninguém rouba de mim.

A minha camisa sempre foi vermelha…e verde.

Manhã de frio na biblioteca.

– Leio no ônibus, moro no Alvarenga, é uma hora, às vezes mais pra chegar lá…

Lidia é operadora de telemarketing, frequenta a biblioteca pública há alguns anos, vem nos intervalos dos turnos de trabalho. Algumas vezes trás a filhinha. Fala de leitura com simplicidade.

– Eu leio até em pé no ônibus, aprendi a fixar os olhos e esquecer os sacolejos.

O ato de ler muitas vezes pode ser turbulento, ele acontece em condições adversas, em meio a precariedade das cidades, nos fluxos de transporte coletivo, no longo hiato que prolonga a jornada de trabalho.

Exercer o direito de ler não obedece à lógica do conforto, é luta, insistência, uma conquista.

– Meu sonho é trabalhar numa biblioteca como essa. Quando vai abrir concurso pra trabalhar aqui?

Lídia continua:

– Quando eu era mais nova, no Ceará, eu trabalhei numa biblioteca. Gostava de tudo, das crianças, dos livros.

Enquanto a cidade desencanta, a biblioteca pública tem seus momentos de encantamento. Por ser um espaço aberto, público, de convivência, ela pode forjar esses respiros.

A fala de Lídia publiciza esse encantamento. A leitura assume o seu papel de revelar os atalhos de resistência, as saídas. Então, o espaço de leitura cumpre seu papel primaz.

– Espero que um dia eu possa trabalhar aqui.

Nós também esperamos, tantas Lídias quantas forem. De esperança, de resistência, da leitura como um descaminho que transforma a cidade. Tudo isso só pode acontecer num espaço público, democrático e irrestrito.

Fez menos frio nessa manhã da biblioteca.

Partido em 5 foi uma reunião de bambas do partido alto que frutificou dois elepês pela Tapecar em 1975.

Candeia, Velha, Joãozinho Pecadora, Wilson Moreira, Helio Nascimento, Anézio e Casquinha gravaram os dois discos com base percussa nobre formada por Luna, Marçal, Gordinho e outros que não consegui apurar.

É referência, são duas pedras fundamentais do samba. Lá pelas tantas entra uma composição do Velha da Portela chamada “Festa de rato não sobra queijo” (tá nos comentários o link), a letra parecia mediúnica e futurista:

“Não aceito essas conversa, ô cara,

Quem espera tempo bom é sertanejo.

Não leve a mal me dê o meu agora,

Em festa de rato não sobra queijo.”

É certo que o Velha respeitava os sertanejos e que se valeu de uma licença poética. É também certo que samba não é piada ruim e preconceituosa, assim como o sertanejo também não o é. Piada é a industria do entretenimento corroendo tudo e jogando os fracos contra fracos, fazendo perder quem sempre perde.

Viva os bambas, viva quem vive de viola e não de piada ruim.

A quebradeira de 2008 colocou a sanha do capital em outro patamar. É preciso drenar qualquer resquício de recursos para a área social, o estado deve ser mínimo e como nunca é necessário para quem o minimiza.

Quem finge odiar o Estado e se apropria dele, está atento a qualquer oportunidade para fazer a máxima de “todo dinheiro disponível é fundamental para a acumulação”, as situações e os métodos variam, mas o objetivo é sempre o de aumentar o abismo entre os muito ricos e os miseráveis.

O golpe no Brasil funciona como uma espécie de organizador dessa fase do neoliberalismo, o que era dissimulado ficou explícito, a PEC do fim do mundo e a interligada destruição dos direitos sociais, são parte importante desse projeto, o governo Federal e seus congêneres municipais o fazem sem delongas e sem cerimonias, confortáveis e convictos como nunca.

Na sexta feira, a minha companheira Gabriela me mandou uma mensagem relatando que o rapa havia passado nos baixos do Elevado, na General Olimpio da Silveira expropriando os pertences dos vários moradores de rua que se instalam por aqui. A prática não é incomum, nem nova, mas no contexto ela se besunta de perversidade.

A miséria tem cores, ela é diversa, mente quem diz que ela é cinza homogênea. Homogêneo é o olhar que despreza os invisíveis, homogênea é o pensamento que circunscreve as necessidades de um morador de rua à fome.

Abandono é mais que fome. Para entender esse diverso é preciso quebrar a parede da invisibilidade, olhar cada vida que habita a rua dentro da sua subjetividade, tanto a alegria como a dor de cada pessoa tem nexos diferentes, olhar grupos de pessoas como manchas uniformes é um jeito silencioso de mata-las.

O pós rapa é perverso pra quem mora nas ruas, ele desorganiza, tira a referência, subtrai dos moradores de rua o pouco que eles possuem, mas não são as poucas posses que fazem tanta diferença, a destruição do rapa que envolve força armada, caminhões e truculência é a confusão mental que ele deixa, é o aprofundamento do sentimento de abandono e de perda de referências, é expulsar do chão duro, aqueles que têm nesse chão o norte e o sentido que resta na vida.

O rapa além de destituir, espalha as pessoas como se fossem baratas.

Sábado, na hora do almoço, nós (eu e Gabriela)fomos abordados na esquina de casa por um rapaz que tava sentado no meio fio da calçada. Ele me chamou com a voz baixa, tímido, pensei logo que era a abordagem de pedinte, visualizei o quanto tinha de trocado e me preparei para a resposta.

– Senhor, não é dinheiro que quero, eu preciso mesmo é de roupas – o tom era angustiado, as palavras saiam um tanto engolidas.

– Eu tenho algumas roupas pra doar, mas agora estou de saída e, antes de doar, preciso separa-las. Qual é seu nome, onde você costuma ficar, fala que eu levo as roupas pra você.

– Meu nome é Emanoel, eu costumava ficar aqui do lado do Extra (lugar de grande concentração de pedintes), mas eu fiquei um tempo no albergue, voltei pra rua esses dias, não sei onde estão os amigos, o Rogério…levaram minhas coisas.

O rapaz tava confuso falava e chorava, foi difícil entender. O dialogo de quem nunca tem dialogo. Não parecia bêbado nem chapado, era angustia, desorganização, a vida que vai perdendo o tino, as palavras se perdem no abandono.

Tentei combinar um lugar para levar as roupas mais tarde, pensei os jeitos, no meio de tudo vi que era um gesto inglório, solto, perdido nesse emaranhado de carências, perversão e desigualdade. Tateei o bolso, tinha pouco dinheiro, 4 reais, entreguei nas mãos do Emanoel, que em momento nenhum pediu dinheiro. Ele agradeceu com a mesma angustia estampada.

Seguimos, andamos um pouco e comentamos o rapa do dia anterior. Rapa é uma espécie de política pública da exclusão, do austericídio, pode se usar o argumento que for, mas é perverso, é feito pra tornar o homem e as manchas cinzas da cidade mais invisíveis do que são, é feito pra enlouquecer, pra obrigar o morador de rua a desistir de ser gente. É uma ação direta de destruição de vidas.

Andamos mais dois quarteirões. A pequena praça da esquina da Rua Mario de Andrade com a General Olimpio tava limpinha, podada, sem dejetos e sem a maioria dos moradores de rua que vivem ali. Para a gestão fascista e para quem só enxerga manchas e homens cinzas, o rapa cumpriu seus objetivos.