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Arquivo mensal: outubro 2019

No início da década de 70, a família de João saiu do sertão do Ceará, atravessou o Estado de Pernambuco e foi viver no sertão da Bahia.

A ideia da família era vir para São Paulo, no entanto, as circunstâncias e a falta de dinheiro picotaram o caminho.

Quinze anos depois, em 1989, ao chegar na periferia de Santo André, cidade do bolsão industrial paulista, João completaria sozinho o trajeto originalmente traçado por sua família.

Em poucos minutos, João, hoje motorista de aplicativos, contou sua trajetória inicial, o percurso sertanejo, o desejo de sair para o mundo, a vinda para o incerto sonho.

Em Santo André, João veio encontrar um primo mais velho e acertou um racha de um espaço de três cômodos. Tocaram a sociedade por alguns meses, até que o desemprego de ambos, salvos por esparsos bicos, resultou em despejo:

– Saí de manhã, voltei a noite, não achei nada. Nem meu primo, nem as poucas coisas que eu tinha. Não sabia o que tinha acontecido, nem como foi o despejo.

Depois de localizar o primo na casa de um outro parente, João não viu outra solução do que a de morar numa construção abandonada, nos arredores de onde vivia. Perambulou pelo bairro, tentando algum emprego e no limite, algo pra comer.

– Rapaz o que aconteceu com você? – foi assim que numa manhã de 1990, João foi abordado por um conterrâneo que era dono de um dos botecos da região.

Era bem simples o boteco do Ceará, balcão, poucas cadeiras e a mesa de sinuca que virou a base da cama do João após o fim do expediente. O acordo era comida, cem cruzeiros e a cama de dormir.

Foi assim que João se levantou. Como ajudante do Ceará, o jovem cearense começou a acertar a vida em Santo André. Logo, veio uma outra proposta de trabalho que quando comunicada ao solidário conterrâneo gerou a seguinte frase:

– É assim que tem ser, segue sua vida…

O trajeto, a frustação, a solidariedade, a mão estendida do camarada, o caminho construído após, no qual construiu família, lar e a relação com os novos lugares, constituiram o enredo da história de vida que João me contou. Mas, a grande comoção veio com o desfecho, com o olhar sensível de João sobre a conjuntura que vivemos:

– Sabe, Sr Ricardo, toda vez que eu vejo um morador de rua, alguém pedindo no farol ou dormindo nas calçadas, me vem a imagem do rosto do Ceará…se não fosse por ele, eu poderia ter caído nas ruas e nem sei o que seria de mim…eu sou muito grato a ele e procuro ser solidário com quem vive nessa condição.

O cearense João nunca mais viu o Ceará, os desenlaces da vida separam seus rumos. No final do ano passado, João foi ao bairro de Santo André e onde era o bar hoje é uma serralheria. Perguntou por Ceará, disseram que ele morava em outro bairro, distante, sem endereço certo.

Uma história de gente comum, uma história lastreada na solidariedade. Foram quarenta minutos entre São Paulo e São Bernardo. Dessa forma, nesse curto tempo, que eu pude saber da história do João, do Ceará, dessas pessoas, entre milhões, que constroem o patrimônio sentimental desse país.

Eu folgo às segundas. É bom ter folga no que chamamos de dia útil. Irônico, na lógica do capital, dia de descanso é dia inútil.

Semântica indutora à parte, uso a segunda útil para mesclar andanças com resolução de pendências.

Na última, me pus a ir na Santa Ifigênia para comprar álcool isopropílico que a Gabriela usa pra cuidar das plantas.

Andanças em quarteirões conhecidos, Rio Branco, Ipiranga, a Santa Ifigênia no seu fim. Tudo muitas vezes visto e andado e de repente um deja vú.

Meninos, muitos meninos na rua, andando a esmo, com roupas largas, sujas, descalços, alguns agressivos. Filme visto, filme triste.

Lembrei dos anos 80, bando de meninos atemporais, as roupas iguais de largura inadequada, e como palco, o lado cinzento da cidade que as décadas pouco mudam.

Os de hoje nao cheiram mais cola, vão direto para a pedra ou bebem gorotinha.

Voltei quarenta anos. Até a cavalaria da PM abordando viciados em crack, segue com a mesma postura que se arrasta por décadas.

Mas, foi a visão dos meninos que me fez voltar as mesmas décadas de cavalos e militares.

Os cinquenta e três anos transformaram esse flashback numa coisa mais amarga e doída. Nossa derrota, novamente, trouxe os meninos pra rua.

A cidade parece sempre pronta a mal acomodar os seus desvalidos e não importa a utilidade ou a inutilidade de nossos dias, o que grita e fustiga é que eles se repetem.

Morreu o professor.

Quando o morre um professor, morre um pouco da lucidez, da destreza, da antevisão, da acuidade, do cuidado, da racionalidade.

Hoje, morreu o Professor Wanderley Guilherme dos Santos, agudo, sintonizado, militante e presente, perda grande.

Os dias findam mais cedo com certas ausências.

Tomara tenhamos firmeza para enfrentar as noites longas.

Boa viagem, mestrão!

Tenho lido aqui e ali que os funcionários públicos serão o próximo alvo do trio Bolsonaro/Guedes/Rodrigo Maia.

É preciso deixar claro que o trio citado são os prepostos atuais de velhos personagens, jagunços do capital.

Mas o ponto que quero enfatizar não é o dos carrascos, antes de tudo quero falar dos proprios funcionários públicos, os supostos açoitados.

Sou funcionário público há 26 anos, fruto da Constituição de 88 que exigiu concurso público como premissa básica. Trabalho no chão, sou burocrata de piso, atuo no atendimento direto da população em biblioteca pública, um lugar aberto e (quase) irrestrito da cidade.

É desse lugar que vejo as contradições pulsarem. Vejo, anoto, reflito, exorcizo, me amedronto, tento ressignificar. A reclamação do público, o elogio do público, a relação do público com o privado, a privatização do que é público, a resistência do que é público ante ao privado, a potência da público e privado em parcerias inusitadas…

Poderia descrever dezenas de situações exemplificando, mas devo me ater a outro aspecto, aquilo que poderíamos chamar de autofagia do funcionalismo público, no português de rua representa o famoso tiro no pé.

Óbvio que não estou falando da totalidade dos funcionários públicos, existem setores resistentes e com a minima consciência, mas nesse momento de desconstrução e ataque, o reacionarismo, a leniência, a alienação e mesmo o silêncio tendem a ganhar espaço e funcionam como potente ferramenta de destruição de direitos e conquistas.

O que mais deixa pasmo é observar pessoas que agem cotidianamente para destruir os próprios direitos desvalorizando os serviços, os espaços públicos em que atuam e a própria legislação que minimamente garante os dispositivos para que elas possam trabalhar com dignidade profissional. Muitas vezes fazendo a velha e caricata apologia da suposta superioridade do privado em relação ao público.

Conheço histórias emblemáticas e próximas, o que não posso e nem devo é personificar um fenômeno que está para muito além do individual.

Maioria ou minoria, é esse perfil que concorre para agir como linha auxiliar na destruição dos serviços públicos. São os parceiros do sonhos de Paulo Guedes et caterva, aqueles que de maneira suicida fazem parte dos coveiros da Constituição Federal de 1988.

No horizonte do desmantelamento do estado brasileiro, o funcionário público é o vilão perfeito que habita o imaginário do senso comum.

Lamento que muitos de nós concorra para que isso se estabeleça como verdade, espero que acordem antes que se percebam atando o nó no próprio pescoço.

Muitas vezes é preciso que entendamos a força de um momento, mesmo que ele aparente um pequeno fio de luz, um contraponto, um pé de página. Há uma potência, uma saída.

O senhor Pedro completou 65 anos no último dia 10. Ele conheceu uma São Bernardo coberta de mato, cortada por rios, riachos e brejos depois de vir de Minas Gerais com dois meses de idade.

A cidade é sempre essa mudança na qual o lugar da memória trata de (re)fazer percursos singulares, asseverações sobre paisagens, caminhos, casas, prédios e temporalidades que vão tingindo uma história coletiva.

– Eu frequento essa biblioteca há mais de cinquenta anos, ela nem era aqui, teve três endereços, muita gente trabalhou aqui, as pessoas foram sumindo e eu fui conhecendo todo mundo.

O senhor Pedro foi dizendo os nomes das pessoas, os endereços em que a biblioteca funcionou e num primeiro momento fui especulando fatos e personagens, mas logo percebi que o que importava ali não eram as informações, mas o que Pedro viu e interpretou e sente, a biblioteca construída em sua memória, singular e única.

– Eu joguei muito xadrez aqui, passava um bom tempo, conheci pessoas e muitas vezes não trocava uma palavra, eram só o tabuleiro, as peças e o silêncio do jogador.

O silêncio da biblioteca de Pedro era diverso da biblioteca silenciosa fetichizada por tanta gente. São assim as milhares de bibliotecas interpretadas marcadas nas vidas das pessoas, única para cada qual. Porta adentro, porta afora, entram e saem as diversas interpretações que muitas vezes não cabem, escapam do rigor institucional e dos estereótipos dos lugares.

– Eu sempre gostei daqui, volto sempre, passei um longo período sem frequentar, porque tava doente, acidente de trabalho, problema grave de coluna.

Nos últimos tempos, o Pedro tem vindo na biblioteca entre dezenove e trinta e vinte horas, pelo menos uma vez por semana. Quando eu o conheci, há alguns anos, ele vinha sempre de manhã. A permanência é sempre breve, empresta livros, lê os jornais, troca uma prosa, faz comentários efusivos e animados, um contraponto ao antigo silêncio do jogador de xadrez.

– Ainda jogam xadrez aqui, tem tabuleiro?

Eu respondi que sim. O olhar interessado e de expectativa de volta aos tabuleiros apontam para um Pedro que é a própria memória vivenciada e atuante de seus percursos na biblioteca. Ele está perseverante e dentro da biblioteca pública. Tudo isso prova que a cidade lá fora que mudou tanto, nunca desistiu dela, está sempre à procura da biblioteca de si.

Obrigado, Pedrão (é o jeito que eu o chamo).

O Ponto Mis é uma parceria da Prefeitura de SBC com o Museu da Imagem e Som que exibe toda quarta-feira um filme nacional.

O ponto de SBC é a Biblioteca Monteiro Lobato e tá rolando há uns cinco meses.

Hoje o filme exibido foi Divinas Divas da Leandra Leal. Vi esse filme em 2016 no Inedit excelente festival de documentários produzido heroicamente pelo Leo e pelo Marcelo Aliche.

Divinas Divas é um tocante documento que conta a história das pioneiras travestis que faziam shows na noite carioca na década de 60. O Teatro Rival, gerido pela família de Leandra, era o principal palco desses libertários espetáculos, cheios de atitude, ousadia e lirismo. Leandra conviveu com elas desde cedo.

As divas desbravadoras eram Rogéria, Jane Di Castro, Divina Valéria, Camille K, Eloína dos Leopardos, Fujika de Halliday, Marquesa e Brigitte de Buzios. Artistas ousadas, mulheres fortes de um Brasil contraditório e intolerante.

O filme começou sete em ponto. Eramos eu e uma garota contumaz frequentadora. Eu pensei ser uma pena que um documentário tão bonito e bem feito não tivesse a audiência merecida, a cidade perdendo mais uma oportunidade.

E ai chegou a surpresa que as sempre imprevisíveis ações culturais nos reservam.

Chegaram 11 pessoas, que eventualmente aparecem nas sessões. O povo da abordagem de rua do Centro Pop – serviço da Assistência Social da Prefeitura – que monitora e presta assistência à pessoas em situação de rua.

A sociologa e educadora Maísa veio acompanhada de seus assistidos e trouxe suco com pacotes de pipoca, muita paciência, carinho e habilidade para lidar com os perfis variados. São jovens, idosos, alguns solitários, outros gregários, todos calejados e experimentados nas agruras das ruas.

Dentre eles haviam duas travestis. Jovens e irreverentes chegaram comentando em voz alta as imagens e logo que perceberam o tema e o enredo, do jeito delas, prestaram homenagem e reverência às pioneiras e veteranas. Foi algo bonito de ver.

Não houve combinação. Nós da biblioteca não sabíamos que eles viriam hoje e a educadora não sabia nem o título, nem o tema do filme de hoje. As tais das doces coincidências.

Divinas Divas cumpriu um papel muito próprio e condigno com a história que ele carrega. A identificação, a alteridade, o dialogo em comum. As jovens travestis com toda certeza não esperavam esse filme tão próximo de suas histórias.

É assim que vivemos,convivemos e absorvemos algumas experiências impagáveis na vida profissional.E então, uma quarta qualquer se ilumina na tela e fora dela.

Em 1999 nos (Divisão de Biblioteca Pública) criamos a Gibiteca Municipal aqui em São Bernardo do Campo. De início, ela funcionava na Câmara de Cultura na Rua Marechal Deodoro.

Cabe dizer que a ideia inicial da Gibiteca foi da Silvana Borin, bibliotecária que infelizmente não está mais conosco. Entre 1996 e 2000 eu tive uma relação amorosa com a Silvana e nós sempre sonhavamos com um espaço voltado à cultura pop no âmbito público, eram alguns sonhos em comum, ela foi uma grande influência.

A localização central, o bom acervo e o apelo da cultura pop (hq, rpg, ficção científica, mangá, anime e etcs) garantiram um bom público, apesar das trombadas da gestão conservadora.

Em 2001, a Gibiteca foi transformada numa sala da Biblioteca Monteiro perdendo assim o viço e o brilho próprio.

Mesmo assim resistimos mais sete anos no espaço, de início com a parceria do Carlos Silva, depois com a Ivanete Romero, companheiros de luta. Assim foi até 2010, momento em que saí pra outra função.

Como gestor da Divisão de Biblioteca eu co patrocinei a mudança da Gibiteca para um espaço da Cidade de Criança, momento em que o espaço passou a ser denonimado Gibiteca Municipal Eugênio Coloneze, em homenagem ao quadrinista e ilustrador italo argentino que viveu a segunda metade de sua vida no ABC paulista.

A mudança não surtiu os efeitos esperados, mas isso é assunto longo e polêmico, não cabe discutir agora.

Erros e acertos num espaço cultural não encobrem alegrias e tristezas, historias de ações culturais, de pessoas, de encontros, de trocas, de conflitos, de frustrações. O entra e sai de pessoas e situações aumentam enormemente o repertório de rostos e feições.

Hoje tava atendendo no balcão da Monteiro Lobato e apareceu um rapaz negro de uns trinta anos. Ele pediu livros de logística automobilística, explicou que estava fazendo um curso técnico. Conhecia aquele sorriso timido e contido.

Conheci de fato aquele menino, que era de fato um menino em 2001/2002 quando frequentava a Gibiteca. Ficava horas por ali e sempre levava emprestado os 10 gibis que lhe eram de direito. Em outubro de 2019 o Carlos Cesar continua voltando na biblioteca.

Abordei e fiz a pergunta, ele confirmou com o mesmo sorriso timido, agora fixado nas tecnicas da logística, na busca incensante de toda a classe trabalhadora. Já não tem tempo pra historias em quadrinhos, agora trabalha como disse Milton Nascimento em uma velha canção.

Às vezes é bom esse tempo que passa e que nos faz ver as coisas, a vida, as pessoas em movimento. Poder ver, rever pessoas e histórias é um privilégio que torna a vida menos breve e volátil.