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Arquivo mensal: abril 2019

Perto daquela nuvem à direita, não exatamente lá, mas perto, fica localizado o apartamento de Lula da Silva. É, na janela frontal do quarto de dormir tenho esse cenário.

Mas por que é importante falar agora da casa onde Lula da Silva mora?

Eu poderia elencar vários motivos, mas me atenho ao principal.

O Lula da Silva que mora perto daquela nuvem não está lá agora, isso é sabido. E não está lá por um motivo simples e único: ele ainda é o único contraponto expressivo diante da grande e tenebrosa nuvem que paira sobre o Brasil.

Peço desculpas pela metáfora pobre que coloca nuvem como algo temerário. Muitas vezes é necessário usar clichês para ser facilmente entendido.

Longe dessa nuvem de São Bernardo, sobre a renitente nuvem de Curitiba, Lula da Silva deu uma entrevista ontem ao El País e à Folha. Antes, ele foi silenciado por uma medida draconiana do STF durante a eleição. O silêncio de Bolsonaro ganhou a eleição. Ontem, o contraponto soltou a voz.

Nos dias de hoje, o silêncio de Bolsonaro se transformou numa grande cacofonia metalizada, que, sob a regência do maestro Guedes, embala um pacote destrutivo que abarca nossa economia e extingue o que ainda nos resta de soberania.

É hora de construirmos contrapontos potentes, Lula da Silva sempre do seu jeito, mostrou ontem que isso é possível.

Antes que os camaradas da esquerda perfeita venham me acusar de lulista cego, devo dizer que não vejo o Lula da Silva dentro da lógica sebastianista, o redentor que viria sob uma nuvem de perfeição, afinar a sinfonia de nossa crise.

Ao contrário de redentor, Lula da Silva, pode materializar a oportunidade de aprendermos com nossos erros e olharmos com cuidado para nossas escolhas pretéritas.

Diante de tantos percalços e derrotas, ele continua entendendo o país como possível e praticável e nao apenas como laboratório de crítica e (auto)crítica de egos.

Não é o caso de seguir Lula da Silva, antes disso, vale mais ficar atento à sua trajetória. A análise concreta da realidade que tome seu espaço.

Sigo nesse sábado de trabalho, com a consciência de que o tempo de observar nuvens e luzes não pode tomar muito tempo. É preciso ir atrás da tal potência.

A Barra Funda tem a Avenida Mario de Andrade. No limite da avenida do pai de Macunaima com a General Olímpio de Silveira está a Praça Antônio Cândido Camargo.Seria bom se fosse o de Mello e Souza.
O encontro do mestre com o seguidor. Arranjo perfeito. Poderia ver tudo da janela.Mas é o Dr AC Camargo da Medicina, o homenageado.As elites sempre se acertam.Mas não estou escrevendo para falar dos arranjos das ruas e das elites. Antes, me interessam, as pessoas que nelam andam.Nas ruas com nomes de figuras históricas ou não, as pessoas ficam todo o tempo. Algumas mais do que outras e cada vez mais tempo.A crise está prolongando mais essa estada. E como já disse outras vezes, essas pessoas vão ficando e se tornando vizinhos. Da pra ver tudo da janela.Existe uma senhora nova na área. Uma moradora das ruas. Já a vi umas quatro vezes. Ela fica justamente ali na Praça AC Camargo no cume da Mario de Andrade.Ela é negra, usa lenço na cabeça, anda com umas sacolas e uma bolsa com a bandeira da Inglaterra como estampa.Hoje fui ao supermercado e a vi de frente, ao atravessar a Mario de Andrade. Ela lembra muito a Carolina de Jesus, nossa vigorosa e seminal escritora. O lenço, as roupas, a ancestralidade. Não sei o seu nome, fixo Carolina.Na verdade essa alusão me incomoda. Sao mil carolinas como já li algum dia. Uma frase que encaixa e incomoda. Parece a imagem de uma perpetuação, do congelamento de uma condição precária. De uma Carolina de Jesus que se encontra com Mário de Andrade, sua rua, sua avenida, seu destino.Eu gostaria de ter escrito essa crônica de outro jeito, mas o que veio foi essa imagem incomoda, cheia de marcas de distinção. Um escritor consagrado, a escritora marginal, as ruas e seus moradores. Como se a vida coubesse num quarteirão há muito congelado.É segunda-feira, quase nove e meia da noite. Tô na minha janela e a senhora negra que parece a Carolina de Jesus, atravessa a Avenida Mario de Andrade, com o passo lento e solitário, o passo de quem tateia as ruas, sua casa provisória. Sem as sandices e citações literárias. Vida bruta e real.Que essa crônica torta e a foto roubada a aqueça de alguma forma.

Ele estava lá sozinho olhando as estantes. Um ir e vir lento na oitocentos e treze. Sim, classe oitocentos e treze é romance estadunidense na Classificação Decimal Dewey. Ele conhece bem este canto da biblioteca, mas hoje tinha algo diferente.

– Bom dia, seo Deolindo. Tava difícil de escolher o livro hoje? Demorou mais que o de costume?

– Pois é, a estante tá ficando pequena, já li bastante romance dali…

Os olhos estavam baixos, o rosto sempre sereno, estava um pouquinho apagado. Não pude evitar a pergunta:

– Como tá a Dona Maria?

– Ela não fala mais, está triste. Não quer sair, não quer ler…não quer vir mais na biblioteca. Outro dia levei um livro pra ela, nem olhou…está desistindo…é o Alzheimer.

Deolindo e Maria, veem juntos na biblioteca há uns cinco anos. Ela, é antiga frequentadora, há muitos anos empresta livros na Monteiro Lobato. Ele, completou o par de leitores após a aposentadoria. Um doce caso de mediação.

Na última vez que vi Dona Maria na biblioteca, ela nada falou, tinha olhar alheio e impessoal.

Deolindo interrompeu meu instante de lembrança:

– Trabalhei na Companhia Light, entrei lá no ano de 1959. Era leiturista, fazia o atendimento de reclamações, trabalhava nas ruas. Andei nesse centro de São Bernardo, Santo André e São Caetano por anos.

Continou:

Naquele tempo, só conhecia a biblioteca pela fechada de tanto passar em fre, depois minha velhinha me convenceu a vir com ela, nao parei mais.

O rosto do seo Deolindo mudou, ganhou vida ao falar do trabalho, esboçou um sorriso. Eu dei corda e ele falou mais da Light, da sede no Viadutos do Chá (hoje o shopping Light), das histórias e dos companheiros de trabalho.

– Muito obrigado rapaz , pelo papo, é bom espairecer e lembrar das coisas boas.

A vida de trabalho e amor entrelaçados.

Deolindo pegou o livro e se foi. A manhã de sexta-feira ficou preenchida com o lirismo da historia desse ex funcionário da Light e de sua amada mediadora de leitura, Maria.

– Eu fiquei 1072 minutos sem tomar gol, foi muito bom, era tudo muito bom…Ontem à tarde, na entrada da biblioteca, o Alexandre e o Eli batiam um papo. O Alexandre é um companheiro de trabalho, é guarda patrimonial, o Eli…ah, o Eli eu conheço faz tempo, desde os anos 80 do século passado. O curioso é que o Eli me conheceu só ontem. Eu vou tentar contar a história.O time bom da cidade de Sao Bernardo do Campo em meados da década de 70 era o Aliança Clube Rudge Ramos. Em 1975, o Aliança faturou o Desafio ao Galo, torneio bamba da várzea paulistana. Os jogos eram domingo de manhã, transmitidos pela Tv Record, primeiro na Rua Javari, campo do Juventus, depois no CMTC Clube. O time azul do ABC venceu o SuperGalo e ficou famoso.Em 1976, o Aliança Clube foi disputar a Segunda Divisão do Paulista. Glória e um vice campeonato numa disputa histórica com o XV de Jaú. Disputou como Aliança ate 1981, quando se fundiu com o Esporte Clube São Bernardo, que estava de licença desde o inicio da década de 60.É aqui que o Eli entra no gol, exatamente na transição dovAliança para Sao Bernardo.Antes, o Eli Graciano, que nasceu em 1960 e começou tudo em 1975 na escolinha do seo José Rossi, tentaria sorte no São Paulo, levado pelo ex meia, Jaiminho. Nao rolou. Em 1978, ele voltou para Sao Bernardo, treinou nas categorias de base e estreou em 1981 no Aliança como profissional. Em 1982, o Aliança virou EC São Bernardo e o titular era o Eli.- O time era bom e na segunda divisão do Paulista não tinha jogo fácil. Era pedreira em cima de pedreira. Mas, a gente seguia.Os olhos brilham e a vida das traves parece ainda muito perto desse cara que jogou muitas partidas no Baetão e no Primeiro de Maio e fechava o gol.Entrei de vez na conversa:- Velho, você era bom mesmo, sabia sair do gol e ligava as jogadas rapido, assisti você…Volto no tempo e lembro que o único jogo que eu vi num estádio de futebol com o meu irmão foi um amistoso do Aliança nao lembro com quem. O Eli tava lá e meu irmão disse:- Esse negão é foda, goleiro bom, sabe sair do gol e ligar jogadas rápidas, coisa rara em goleiro brasileiro.Fui pouco original, repeti as palavras do meu irmão trinta e oito anos depois. A diferença é que pude dizê-las para o próprio Eli. Acho que em algum lugar nesse momento o meu irmão sorriu.- Tinha o Silvano na ponta esquerda, o Zecão , o meu irmão Vicente, que era lateral esquerdo. Nao era fácil ganhar da gente. Depois eu sai, rodei o interior de São Paulo e joguei até no Moto Clube do Maranhão.A conversa fluiu, o Alexandre ficou assistindo admirado, ele não conhecia goleiro, mas conhece o Eli que batalha todo dia nas ruas como vendedor da Eletro Fio. Histórias que se complementam.Poderia seguir ali na conversa por horas, mas há o trabalho e o tempo é outroNa despedida, disse ao Eli que ele seria sempre bem vindo na biblioteca e que o encontro foi uma viagem em nossas histórias.O Eli sorriu, creio que tenha entendido o que eu disse, pois o goleiro de verdade nunca perde o reflexo. Foi embora o Eli na tarde nublada de São Bernardo, ágil como era no tempo das traves, atento, pois o jogo da vida não se encerra com o apito.

– Moço, pode me ajudar?

– Claro, qual a dúvida?

Essa pergunta vem sempre carregada de alívio para um bibliotecário. Se existem dúvidas, se prevalecem perguntas sem respostas, ainda nos resta alguma utilidade. Como eu já escrevi algum dia: uma biblioteca aberta é o princípio de nossas dúvidas.

– Minha filha está na creche ainda, mas logo ela estará na escola. Hoje, ela não tem contato nenhum com redes sociais, mas acredito que na escola terá. Eu gostaria que você indicasse algo que discuta o uso que as crianças fazem da rede social, algo menos complicado que o Baumann…

Era a DÚVIDA, daquelas mais graduadas e digna de uma mediação cuidadosa.

Resolvi abrir o diálogo.

– O que te aflige?

A mãe não vacilou:

– O uso excessivo, os conteúdos duvidosos, fake news…esse mundo de mentiras…

Enredamos uma conversa sobre a qualidade, a quantidade de informações, fontes, livros, web, educação formal e informal.

Uma mãe responsável, preocupada, atenta mostrando a fragilidade e ao mesmo tempo a força e a prudência com a educação da filha, em meio a um bombardeio perverso.

Indiquei dois textos que pesquei em outras pesquisas que já havia feito na rede. Ela pareceu satisfeita. Deu uma olhada rápida nos conteúdos e lançou:

– Sabe moço, eu estou há muito tempo sem acesso a redes sociais, Internet, etc, por falta de recursos. Isso acabou sendo bom, criou um espaço pra eu me perguntar se aquilo estava me fazendo bem de verdade, senti um alívio… daí pensei na pequena…

Não havia desejo probicionista, nem arroubos moralistas nas dúvidas dela, era puro amor, preocupação, zelo e interesse pelos caminhos da filha.

A grandeza de trabalhar com a mediação se revela nessas surpresas de fim de expediente.

Um liberal diria: é a crise criando oportunidades. Eu prefiro: é a crise criando sinapses.

Nos últimos meses tenho tido notícias sobre pessoas que conheci em outros tempos. Tem acontecido sistematicamente.

O primeiro pensamento ligeiro, é o de que conheci de fato pouca gente ao longo da minha vida.

Tenho encontrado amigos que me contam de amigos ou conhecidos em comum e o tom é sempre o mesmo:

– Lembra de fulano? Se transformou num fascista, extrema direita…

Paro, penso, me pergunto.

Será que mudaram? Ou não mudaram, foram sempre isso, apenas não tinham necessidade ou oportunidade de se revelar?

O mundo do facebook nos transforma em stalkers, espiadores do alheio. Toco eu a ver a vida dos outros para atentar averiguar os rumores. E na maioria das vezes que empreendo essas espionagens sociais, me deparo com posts, comentários e compartilhamentos que obedecem direta ou indiretamente ao decálogo de Olavo de Carvalho e seus convivas/discípulos Allan Santos, Nando Moura etc, entremeados por bichinhos fofos, exaltação à família e a religiosidade.

Não, não, dizer que nunca conheci de fato essas pessoas serve para meu conforto, mas não é verdade total. Eram pessoas que convivia superficialmente, mas havia condições de um diálogo minimo, amistoso, que poderia gerar bons papos sobre amenidades. Essa possibilidade não existe mais.

E não vejo nenhuma possibilidade de reparos desses danos a curto prazo.

Se existe um projeto de interesses concatenado para dividir a sociedade, desidratar o dialogo pela impossibilidade de escuta, ele está em pleno vapor.

Em outros tempos, eu costumava afirmar com uma certa arrogância/ignorância que não acreditava em teoria da conspiração. Hoje, a priori, considero todas. Analiso, acato ou refuto, sempre parcialmente.

O fato é que está muito difícil viver num mundo, no qual você morre de medo de encontrar determinadas pessoas na rua. Andar com os olhos baixos limita as possibilidades de futuro