arquivo

Arquivo mensal: agosto 2022

Lutar por políticas públicas e, sobretudo, pela participação social na construção delas, é uma tarefa básica para quem acredita que há uma possibilidade de um mundo melhor (eu sei que isso é vago e vasto).

Há quem não acredite: aqueles que à esquerda dizem que políticas reformistas de nada adiantam ou à direita que defendem o estado mínimo, que ao frigir dos ovos, é mínimo para os pobres e generoso para os ricos e, por fim, aqueles que só “acreditam” na política quando é conveniente para o projeto pessoal.

A luta pela participação social é fortemente baseada na politização de coletivos e indivíduos. Entender os meandros, as disputas, os fundamentos das políticas sociais é facilmente comparável a trajetória do músico com seu instrumento, cada dia algo a aprender e é estudando e tocando que se supera os desafios, o entendimento e a boa performance dependem do exercício, da prática, do trabalho.

Política pública se constrói participando, errando, entendendo os movimentos de quem se opõe e calibrando os pontos em comum com os parceiros. Qualquer outro atalho desagua em fracasso ou submissão.

Ontem, começamos aqui em São Bernardo do Campo, o desafio de construir o Plano Municipal de Políticas Públicas.

Na verdade, nessa versão (pois temos um plano que construido pela sociedade e nao foi aprovado pela Câmara e pelo Executivo em 2016), o processo começou há cinco meses, momento em que um grupo de funcionários de carreira da Secretaria de Cultura (do qual eu participei) elaborou um pré diagnóstico da Secretaria, uma formação para a sociedade civil, gestores e funcionários em parceria com a Escola de Parlamento da Câmara Municipal de São Paulo, redigiu o regimento e um conjunto de diretrizes e objetivos que servirá como base para a redação do Plano.

Como dizia, a parte mais importante para a construção do Plano iniciou ontem no Encontro Municipal de Políticas Culturais, que aconteceu no Teatro Elis Regina. Mais importante porque foi iniciado o processo de escuta da sociedade civil, que pôde aprovar com destaques e modificações tanto o regimento, como as diretrizes e objetivos sugeridos, e também eleger os seu representantes na Comissão de Preparação para Conferência Municipal de Políticas Culturais (próxima etapa do processo), assim como organizar e registrar as Setoriais nas modalidades por linguagem, coletivos, identidades e territórios que vão tocar as Pré Conferências.

É o início de um processo que tem como objetivos legar à cidade o Plano Municipal de Políticas Culturais, o Conselho de Políticas Culturais, o Fundo de Políticas Culturais e uma Plataforma de Indicadores, tudo isso em acordo com o Sistema Nacional de Cultura.

Sao os instrumentos fundamentais para a construção de uma política de Estado, que propicie continuidade e seja uma vacina contra o personalismo e aventuras para que as políticas públicas tenham efetividade.

É bastante coisa a ser feita, dá bastante trabalho, gera debates e embates, mas é o único caminho para democratizar e fazer valer os direitos culturais na cidade. E só acontece com a participação social.

Nesse momento em que as notícias tristes e as derrotas se tornaram corriqueiras, o Primeiro Encontro de Políticas Culturais foi algo bom de participar, principalmente pela interação com as pessoas, pelo debate e pela sensação de estar avançado em algo que eu acredito e dedico parte do meu tempo. Não há outro caminho fora da política.

Espero de verdade que todo esse processo faça de São Bernardo do Campo, a cidade em que nasci, vivo, trabalho e milito, uma cidade menos excludente e preconceituosa, aberta ao diverso e de possibilidades mais ampliadas.

Ousar lutar, ousar vencer.

The Idiot, álbum de 1976 do cantor Iggy Pop, é uma ode à amizade.

Sim, Iggy Pop já havia feito demais pela música junto com seus camaradas do Stooges. Lançou as bases para o punk e para toda música lastreada na autodestruição criativa feita após seus registros.

Toda essa hecatombe criativa custou muito a Iggy. Drogas, desejos e concretizações extremadas, descontrole do prazer criativo , levaram o rapaz de Detroit a um autoexílio num hospital psiquiátrico.

Daí, chegou David Bowie, o amigo, o admirador e, então, um parceiro.

Bowie se dedicou a fazer a fúria a Iggy Pop brilhar novamente. Em nova versão, emulando o futuro de uma música sombria, que o próprio Bowie aprofundaria em sua trilogia de Berlim (Low, Heroes, Lodger).

Bowie foi parceiro nas canções, tocou, montou a banda (Carlos Alomar na guitarra, Denis Davis na bateria, George Murray no baixo) e ajudou a devolver Iggy Pop para o mundo. Fizeram um álbum influente, muito relevante para o pós punk e os vários pós alguma coisa que vieram a seguir.

Desde que ouvi “The Idiot” há décadas, fui capturado por Nightclubing e Mass Production, verdeiras trilhas do apocalipse. Pitadas eletrônicas, guitarras ao acaso, baixo marcante. É perturbador e viciante.

Mudamos, muda o gosto, a vida pede novos rumos. A minha escolhida nos últimos anos tem sido “Tiny Girl”. Iggy idealiza uma garota, entre melancólico, cínico e brutal (poderia ser parceiro de Serge Gainsbourg nessa) e Bowie muito presente costura tudo com um sax que chega a ser excessivo para dar o lirismo adequado à canção.

No ano de 1976, David Bowie ajudou o amigo Iggy Pop a se recuperar, e de quebra, ele mesmo se recuperou dos seus delirios da fase Los Angeles e foi pra Berlim em “paz”. Bowie, sempre surpreendente, um misto de vampiro (na veia criativa do outro) e grande criador, dedicou horas para fazer um registro que derivou em tantas outras gravações. Foi a melhor forma de expressar a sua amizade e admiração.

Assim, The Idiot, 1976, foi uma das maiores provas de camaradagem já feitas. Poderemos ouví-la, sempre.

O Movimento Mangue Beat foi um impacto para a cena rock e etc dos anos 90. Para a molecada (alguns nem tanto) o groove do maracatu, coco, frevo e varios sons brasileiros irmanados com as guitarreiras, beats estranjas eram um bálsamo para as cabeças viciadas nas paradas anglo saxãs.

Chico Science e Nação Zumbi, Mundo Livre SA, Mestre Ambrósio, DJ Dolores e muita gente com talento desembarcou em São Paulo, muita matéria prima condensada que o nosso etnocentrismo insistia em desconhecer e não reconhecer.

Daí pra frente foi cair na dança e debater as ideias.

Como dizia Chico Science:

“Daruê Malungo, Nação Zumbi
É o zum zum zum da capital
Só tem caranguejo esperto
Saindo deste manguezal
Eu pulei…
Eu pulei e corria no coice macio
Encontrei o cidadão do mundo no manguezal da beira do rio”

Lembro a primeira vez que vi Chico e Nação e foi fundamental para me situar e poder ser um pouco mais brasileiro. Há certas fruições estéticas e políticas que são pura potência para destruir a síndrome de viralata e a condição de colonizado. Desde então, apenas agradeço e tento retribuir.

Ontem no SESC Bom Retiro se juntaram na voz Jorge Du Peixe (Nação Zumbi), Siba e Cannibal (Devotos do Ódio) acompanhados por Dengue Nação Zumbi) no baixo, Toca Ogan, Marcos Matias e Da Lua nas percussões, parte dos tambores da Nação Zumbi, Neilton (Devotos do Ódio) na guitarra e Vicente Machado (Mombojó) na bateria se juntaram no espetáculo Mangue Fonia para comemorar os trinta anos do Manifesto “Caranguejos com Cérebro” escrito por Fred ZeroQuatro (futuro líder do Mundo Livre SA).

Voltei trinta anos e vi que o sentimento ainda é forte e aqueles grooves, aquelas letras, aquelas guitarreiras estão muito vivos. Hoje, infelizmente, não temos mais Chico Science, mas tem muito caranguejo na ativa.

Um destaque especial: vi pela primeira vez ao vivo o lendário Caniball, voz do Devotos do Ódio, banda punk de Alto José Do Pinho, subúrbio do Recife, cantar um hino que habitou meus pensamentos naqueles tempos de formação, com energia e urgência:

“Eu tenho pressa de vencer (Eu tenho pressa)
Eu tenho pressa de vingar (Eu tenho pressa)
Vencer para me suceder (Eu tenho pressa)
Vingar pra me realizar (Eu tenho pressa)”

A pressa hoje é outra, sem vingança, mas preservando a mesma urgência. Reconhecer isso é uma alegria.