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Arquivo mensal: maio 2021

O inverno de 1974 foi rigoroso. A ditadura completava 10 anos, havia um surto de meningite abafado pelos militares. Morriam pessoas e a causa não era divulgada. Geisel era o presidente.

Lembro do frio intenso, de uma dor de cabeça estranha que me infernizou o ano e nunca se descobriu a razão, da casa da Rua Ipiranga para onde mudamos em 1973. Eu tinha 7 anos e nutria duas paixões: futebol e música.

Tenho lembranças esparsas da Copa 70. A gloria dos brasileiros, a comemoração, as pessoas felizes. Pelé, Tostão, Rivelino, Gerson, Piazza, Clodoaldo, Carlos Alberto, a Jules Rimet.

Todo esse êxtase gerou uma enorme expectativa sobre a Copa de 1974 e marcou minha primeira infância. O país cinza de meningites e fardas com óculos rayban, se projetava no futebol como saída, como descarrego.

A Copa de 74 toda foi um anticlimax. Ainda criança pude entender (sem entender) que há sempre um subtexto nas dores do mundo. A seleção que foi mágica em 70, quatro anos se resumiu numa série de equívocos técnicos, organizacionais e políticos que fizeram da nossa participação um fiasco.

Porém, toda derrocada tem uma réstia de triunfo. Não foi gol, não foi drible, mas um não gol, uma defesa, quem salvou foi o goleiro, artilheiro negativo, rei de onde a grama não se sustenta, o guarda valas, como bem cantou Jorge Ben:

“Com a autoridade baleada,
O peso do destino
Na mira da lei, na marca do penalty
O fim de um charm,
Discreto e nublado
Trivial
Alguém esqueceu a bola de cristal”

O brilho da Copa da Alemanha era o Carrosel Holandês. O time dos dois Johan, Neeskens e Cruyff e do técnico Rinus Michels. A Laranja Mecânica já havia detonado os nossos diletos rivais, Uruguai e Argentina, em rodadas anteriores, e naquele 03 de julho de 1974, o Brasil de camisas azuis entrava emcampo para enfrenta-los.

Logo de início, a correria e a marcação sobre pressão dos holandeses surpreendeu o Brasil. Quando digo o Brasil, falo do país, não apenas da seleção. Silêncio e perplexidade. O jogo terminou 2 x 0 para a Holanda. Brasil eliminado. A Holanda chegou à final contra os anfitriões da Alemanha e perdeu. Encantaram o mundo, mas não levaram o título.

Fiz o breve resumo da Copa 74 para poder voltar no primeiro tempo do confronto Brasil x Holanda. Não sei direito qual era o tempo de jogo, aliás, jogo pegado, o Brasil batendo bastante, a Holanda girando a bola com um certo respeito.

Então, veio o não gol triunfante, o grande brilho da minha Copa 1974, deve ter sido de muitos brasileiros naquele momento histórico de alegrias parcas e silenciadas…

Veio um cruzamento da direita na área do Brasil, Zé Maria titubeia, rebate mal e a bola sobra macia para o distinto Johan Cruyff. Ele domina e bate na diagonal, forte, quase gol…Leão, Emerson Leão, o goleiro do Brasil saltou antes, anteviu, arriscou, coisa de craque.

O goleiro brasileiro num totozinho de mão, caprichosamente, jogou a bola pra escanteio. Cruyff ficou pilhado, sem acreditar. Aquilo foi pintura, no melhor estilo, no nível da defesa de Gordon Banks, goleiro inglês, no jogo Brasil x Inglaterra em 1970, quando defendeu uma cabeçada mortal de Pelé.

Aliás, tanto Banks, quanto Leão explicam suas respectivas defesas como fruto de uma antecipação ante à precisão do rival, um desafio heróico quando se tem gênios tais como Cruyff e Pele do outro lado. O goleiro, um ser complexo, é o negativo da epifania mais cristalina do futebol. O homem que tá lá pra evitar o êxtase, o promotor do anticlimax.

Foi uma beleza da infância aquele não gol de Cruyff frente ao Emerson Leão. Foi o jeito da gente comemorar aquele inverno de 1974. Visto aqui do alto dos meus 54 anos parece lírico e emocionante, mas o frio nos nos ossos ainda é sentido. Tudo isso, o jogo, a defesa, o nao gol, o triunfo do goleiro Leão, aconteceu dois dias depois de eu completar oito anos.

Dedico essas lembranças da infância a dois amigos virtuais que vivo trollando por causa do time de coração de ambos. A Sociedade Esportiva Palmeiras era um dos times que jogava mais bonito naquele 1974, inclusive foram os campeões paulistas com o Emerson Leão no gol. Viu, Marcelo Masselli e Humberto Capellari não faco apenas trollagem do querido time de vocês.

Há 28 anos eu exerço a profissão de bibliotecário. Se contar os estágios e empregos temporários na área, lá se vão três décadas. Outro dia fiquei pensando sobre qual sonho eu gostaria de realizar na profissão e vieram muitas coisas na cabeça.

Antes quero falar do ofício.

Não dá pra falar de bibliotecário ou bibliotecário, pois são muitos e diversos os perfis.

A(o) bibliotecária(o) quando não se esconde atrás das regras e classificações atua numa zona híbrida que abrange cultura e educação e requer as sutilezas e as nuances das diversas mediações.

O olhar da sociedade sobre a(o) bibliotecária(o), é muitas vezes distorcido, influenciado pelo peso patrimonialista e positivista que a profissão expõe para desde meados do século XIX. A(o) tal bibliotecária(o) como “guardiã(o) do saber” funciona dentro de um estatuto quase policialesco da profissão, aquele que classifica, aquele protege o acervo e pouco se importa com o espalhamento e a construção do conhecimento. Há muitas exceções, eu diria que cada vez mais, mas também há muito o que mudar na profissão.

Seriam milhares de linhas para dar conta da complexidade que implica a nossa identidade profissional mesclada às diversas questões sociais e políticas que impactam no mundo da leitura, da informação e da construção do conhecimento.

Mas quero voltar ao sonho e ao desejo desse bibliotecário de quase três décadas. Parece singelo, mas não é simples o sonho que tenho. Eu gostaria muito de trabalhar e melhor ainda, poder nomear uma biblioteca em homenagem ao meu escritor favorito. Ele que é pouco lembrado, foi calculadamente subestimado durante anos e recebe hoje um reconhecimento, muitas vezes cínico da elite, que costuma massacrar pessoas com ele.

Estou falando de Afonso Henriques de Lima Barreto, mestre e preferido, como dizia o não menos brilhante escritor João Antônio em epigrafes: “Lima Barreto, pioneiro. Sim, o pioneiro a explicitar nos contos, romances e crônicas, um Brasil de abismos e contradições sem resvalar no denuncismo e nas simplificações, um literato a enfrentar as barreiras de raça e classes.

Hoje, dia 13 de maio de 2021, Lima Barreto completaria 140 anos. Fecho os olhos e enxergo a placa “Biblioteca Lima Barreto”. Seria mais que uma nomenclatura vazia, seria mais do que o carimbo de uma efeméride. Lima Barreto é a expressão de um Brasil historicamente silenciado, perseguido, massacrado, mas que reage ao escravagismo prevalente, que luta, que busca na essência das próprias mazelas e riquezas culturais, um novo caminho, uma nova abordagem.

Viva Afonso Henrique de Lima Barreto, viva a imaginária, mas não impossível Biblioteca Lima Barreto, aberta, democrática e transformadora.

Ao mestrão, pioneiro, meu respeito e reverencia.

Nunca entendi o termo “bala perdida”. É cínico, não explica o que é um alvo o que não é. Em massacres como o que aconteceu ontem em Jacarezinho, o termo “bala perdida” salta do cinismo para o escárnio. Todos os corpos alvejados pela polícia foram alvo, nada foi perdido, não há perda para quem opera massacres.

O sangue nas casas invadidas, as granadas no chão, o pavor nos rostos, as cenas armadas, o discurso oficial que reafirma a carnificina, os mortos sem nome, os números incertos, vinte e cinco, cinquenta, cento e onze?

Tudo isso, expresso em números ou em termos anacrônicos, reafirma uma máxima falada nos últimos tempos: na mesma medida em que o governo Bolsonaro esfacela, o bolsonarismo triunfa. É o triunfo de uma lógica muito anterior ao Jair, o bolsonarismo é abissal.

É certo que não nos livraremos das balas certeiras como política de estado, apenas com eleição, sem enfrentamento, sem exigir punição rigorosa com a pressão política necessária, sem o medo histórico que carregamos sobre o tema política de segurança.

George Harrison escreveu a canção “Isn’t a Pitty” em 1966 para compor o álbum “Revolver”. John Lennon recusou. Há vários versões sobre o porquê e o como dessa recusa. Uns dizem que ela foi oferecida para o Sargent Pepper, outros para o White Album. Não importa. O fato é que “Isn’t a Pitty” prenunciou um fim:

Some things take so long
But how do I explain
When not too many people
Can see we’re all the same
And because of all their tears
Their eyes can’t hope to see
The beauty that surrounds them
Isn’t it a pity “

Quatro anos depois os Beatles se separaram e Harrison incluiu a canção em seu primeiro álbum solo “All Things Must Pass”. É uma historia considerada carne de vaca para os catedráticos em Beatles, mas que aponta para um sentimento recorrente em nossas vidas: o fim que se prenuncia.

De alguma forma Harrison intuiu, como muitas vezes intuímos, o fim de um ciclo. Daí, vem todas aquelas frases prontas do universo, muitas delas para nos acomodar em meio a hecatombes existenciais e tome “há males que vem para bem” ou “foi melhor pra você” .

O fato é que “Isn’t it a pity ” continua nos movendo e comovendo até hoje, num mundo em que já não há nem Beatles, nem George Harrison. E, ainda que de forma aparentemente banal, olhamos para coisas findas ou abandonadas e voltamos a dizer “não é uma pena?”

Há um ano perdíamos o Aldir. Foi duro, foi triste. Aldir representa um Brasil que se diferencia da barbárie e estupidez impostas no dias atuais. Há um ano vivíamos o início da pandemia, não tínhamos noção do que viria. Estamos aqui olhando os mortos, paralisados. E Aldir escreveu em 1975 uma letra que parece feita para os dias de hoje.

A Aldir Blanc, minha reverência:

“As coisas que eu sei de mim
Tentam vencer a distância
E é como se aguardassem feridas
Numa ambulância
As pobres coisas que eu sei
Podem morrer, mas espero
Como se houvesse um sinal
Sem sair do amarelo”

O Luis desenhava muito bem. Vire e mexe eu passava em frente a guarita no hall do prédio e ele tava lendo uns livros de anatomia e referencia para desenhar. Era um entusiasta das artes. Eu o conheci muitos anos antes, pois ele trabalhou um tempão numa loja de tintas do lado da biblioteca que trabalho.

Lá pra 2006, ele começou a trampar como porteiro no prédio em que moro. Batíamos longos papos sobre música e arte nas minhas madrugadas insones. Eu jogado no sofazão zoado da portaria e ele sentado na guarita. Muitas piadas, tiração com a Lusa e com Palmeiras que ele tanto gostava.

Casado, três filhos, vivia dizendo que o sonho era que os filhos tomassem um rumo diferente do dele, que fizessem faculdade, se formassem. Numa noite de 2008, se não me engano, tava lá o Luis exultante, feliz, ao me dizer que o filho entrara na faculdade.

Um trabalhador feliz, orgulhoso com o filho e otimista, mesmo com uma vida cheia de percalços e histórias tristes.

Noutra noite, agora em 2013, cheguei tarde e o encontrei lívido na portaria, dizendo que estava com uma dor estranha na parte interna do nariz. Pediu para eu chamar a síndica que veio rapidamente e arranjou um substituto para ficar no seu lugar.

Nunca mais vi o Luís. Oito meses depois, ele morreu de câncer. Liguei pra ele semanas antes de ele partir, falei que ia visitá-lo e ele pediu pra que eu não fosse, pois estava muito mal e não queria que ninguém o visse daquele jeito. Respeitei. Nunca mais tive os bons papos sobre música e arte nas noites do prédio da Rio Branco. Ele morreu sem eu poder dar o último abraço.

Anteontem ao ouvir as palavras nojentas do pústula que destrói a nossa economia desde 2018, lembrei do Luís. O Luís porteiro tinha três filhos e lutava pelo futuro deles. Espero que seus filhos estejam bem, saudáveis e empregados. Brasileiros como o Luís compensam nossa luta.

Onde estiver camarada, mando o meu carinho e um som do Black Sabbath – talvez “Hole in The Sky” ou quem sabe “Snowblind – sei que você vai gostar.