Frio, muito frio. Um trajeto curto entre o escritório e o café. Se ele quisesse contaria os passos, saberia quantos usaria pra chegar ao estabelecimento. Não contava. Era café puro de coador, sem doce e sem essa frescura de expresso.
Tarde fria e animada, muitos detalhes, muito trabalho, tudo fluindo e sendo encaminhado. Dias produtivos assim, raros, deveriam durar mais. Café amargo descendo, esquentando, broa portuguesa amarelinha em pedacinhos, um par.
Fim do dia. Depois de voltar do café. Mesa arrumada, seu alento, tudo sempre arrumado, era uma coerência que cultivava. Três lápis rigorosamente apontados para o outro dia – sim, ele usava lápis para rascunhar – apesar do tablet que ganhara da sobrinha viajadora. Usava tudo no seu esmero.
Preparado para o frio, três camadas de roupas, seguia mais lento que o normal. A casa não era longe, uns seis quarteirões se o caminho fosse reto. Nunca era, variava todo dia. Mesmo nos dias frios, variava. E descobria coisas.
Sempre pensou a conversa de rotina como uma grande bobagem. Casado há 26 anos. As coisas não eram dinâmicas mesmo. O tempo. Mas seu tempo interno corria solto, fluído. Inventava. E mudava todo dia o caminho.
Cada rua despertava curiosidade, uma casa antiga, um prédio feio. A casa do norte (que vendia comida nordestina) sempre barulhenta e cheia de cheiros. O rapaz que vendia adesivos com frases típicas de caminhão, entre outros badaluques:
“Nas curvas do teu corpo capotei meu coração”
E alongava os quarteirões. Ali pelas seis e vinte da tarde estava no meio do caminho. Todo dia um pedaço diferente de uma rua diferente. Era assim desde muito novo, se perdia em detalhes, gostava, acendia os olhos nas minúcias e na vida foi se safando nessa leveza.
Tudo era comum no demais. Desamores, os encontros tristes, o desemprego. As contas, as banalidades maldosas, as banalidades. Mas sempre havia as minúcias. Elas salvavam cada dia nos anos todos.
Passo sobre passo, por conta do frio o rapaz dos adesivos das frases não estava na esquina da Regente Lima com a Rua dos Alpes, inferia que era o frio. Ruas vazias, a umidade e o vento apressavam os detalhes. Ele ia lento à busca de detalhes.
Quarteirão longo, poucas casas, a maioria eram portas de comércio, algumas fechadas, pouca coisa engrenava naquele pedaço de rua. Longo. Uma porta de ferro, daquelas de subir, metade aberta. De dentro vinha uma melodia triste.
De pronto ele duvidou daquele som, tão contrastante com o lugar, não era lugar de beleza. Um som bonito. Não era música antiga, era um desses banais que você ouve toda hora e em todo lugar. O jeito de tocar era diferente, lento, bonito, triste, tom menor.
Detalhes. Curioso, ele voltou ao ponto. A porta subida pela metade criava certa dificuldade, não tinha jeito de olhar pra dentro. Toda situação de beleza traz consigo uma barreira. Mas para ele não era a barreira, mas a beleza.
A melodia era insistente. Vinha de um piano tocado com certa habilidade, poderia ser coisa de aprendiz pela simplicidade, mas tinha segurança e se repetia como um entorpecimento. O quarteirão ficou longo como nunca.
Ele curvou as costas o quanto pôde, entrou agachado. Era um salão amplo, o cheiro de cimento dominava, caminhou em direção à melodia, cada vez mais perto. Estava bem escuro. Som mecânico ou um piano escondido. Não conseguia ver. A bela melodia.
Os olhos ficaram turvos e a melodia tomava todo o volume do salão amplo. Parecia estar embriagado. Nada de piano ou qualquer coisa que revelasse a origem daquele som. Estava entregue ao mais profundo torpor do novo detalhe.
Quis voltar, olhou para trás, nada de porta aberta pela metade, nem mais o cheiro de cimento, nem mais o frio, e nenhuma força, nem vontade de voltar para trás. Tudo que restou fazia parte agora do grande volume daquela melodia.
Foi o mais longo detalhe. A mais longa volta.