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Arquivo mensal: julho 2013

Frio, muito frio. Um trajeto curto entre o escritório e o café. Se ele quisesse contaria os passos, saberia quantos usaria pra chegar ao estabelecimento. Não contava. Era café puro de coador, sem doce e sem essa frescura de expresso.

Tarde fria e animada, muitos detalhes, muito trabalho, tudo fluindo e sendo encaminhado. Dias produtivos assim, raros, deveriam durar mais. Café amargo descendo, esquentando, broa portuguesa amarelinha em pedacinhos, um par.

Fim do dia. Depois de voltar do café. Mesa arrumada, seu alento, tudo sempre arrumado, era uma coerência que cultivava. Três lápis rigorosamente apontados para o outro dia – sim, ele usava lápis para rascunhar – apesar do tablet que ganhara da sobrinha viajadora. Usava tudo no seu esmero.

Preparado para o frio, três camadas de roupas, seguia mais lento que o normal. A casa não era longe, uns seis quarteirões se o caminho fosse reto. Nunca era, variava todo dia. Mesmo nos dias frios, variava. E descobria coisas.

Sempre pensou a conversa de rotina como uma grande bobagem. Casado há 26 anos. As coisas não eram dinâmicas mesmo. O tempo. Mas seu tempo interno corria solto, fluído. Inventava. E mudava todo dia o caminho.

Cada rua despertava curiosidade, uma casa antiga, um prédio feio. A casa do norte (que vendia comida nordestina) sempre barulhenta e cheia de cheiros. O rapaz que vendia adesivos com frases típicas de caminhão, entre outros badaluques:

“Nas curvas do teu corpo capotei meu coração”

E alongava os quarteirões. Ali pelas seis e vinte da tarde estava no meio do caminho. Todo dia um pedaço diferente de uma rua diferente. Era assim desde muito novo, se perdia em detalhes, gostava, acendia os olhos nas minúcias e na vida foi se safando nessa leveza.

Tudo era comum no demais. Desamores, os encontros tristes, o desemprego. As contas, as banalidades maldosas, as banalidades. Mas sempre havia as minúcias. Elas salvavam cada dia nos anos todos.

Passo sobre passo, por conta do frio o rapaz dos adesivos das frases não estava na esquina da Regente Lima com a Rua dos Alpes, inferia que era o frio. Ruas vazias, a umidade e o vento apressavam os detalhes. Ele ia lento à busca de detalhes.

Quarteirão longo, poucas casas, a maioria eram portas de comércio, algumas fechadas, pouca coisa engrenava naquele pedaço de rua. Longo. Uma porta de ferro, daquelas de subir, metade aberta. De dentro vinha uma melodia triste.

De pronto ele duvidou daquele som, tão contrastante com o lugar, não era lugar de beleza. Um som bonito. Não era música antiga, era um desses banais que você ouve toda hora e em todo lugar. O jeito de tocar era diferente, lento, bonito, triste, tom menor.

Detalhes. Curioso, ele voltou ao ponto. A porta subida pela metade criava certa dificuldade, não tinha jeito de olhar pra dentro. Toda situação de beleza traz consigo uma barreira. Mas para ele não era a barreira, mas a beleza.

A melodia era insistente. Vinha de um piano tocado com certa habilidade, poderia ser coisa de aprendiz pela simplicidade, mas tinha segurança e se repetia como um entorpecimento. O quarteirão ficou longo como nunca.

Ele curvou as costas o quanto pôde, entrou agachado. Era um salão amplo, o cheiro de cimento dominava, caminhou em direção à melodia, cada vez mais perto. Estava bem escuro. Som mecânico ou um piano escondido. Não conseguia ver. A bela melodia.

Os olhos ficaram turvos e a melodia tomava todo o volume do salão amplo. Parecia estar embriagado. Nada de piano ou qualquer coisa que revelasse a origem daquele som. Estava entregue ao mais profundo torpor do novo detalhe.

Quis voltar, olhou para trás, nada de porta aberta pela metade, nem mais o cheiro de cimento, nem mais o frio, e nenhuma força, nem vontade de voltar para trás. Tudo que restou fazia parte agora do grande volume daquela melodia.

Foi o mais longo detalhe. A mais longa volta.

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Desde o início das movimentações de rua operadas pelo MPL , em junho, que se multiplicaram em diversas outras, tomei muito cuidado para não embarcar em análises apressadas e redutoras sobre as manifestações.

Não vou criminalizar movimentos
sociais em hipótese nenhuma, tampouco agir como um deslumbrado olhando para eles sem apontar as contradições percebidas.

Em linhas gerais a base das reivindicações tem toda a legitimidade: melhoria dos serviços públicos e crítica ao funcionamento das instituições.

O perfil dos manifestantes é diverso: jovens estudantes insatisfeitos com as regras e funcionamento da política, militantes de esquerda desiludidos, e uma massa cambiante de pessoas que nunca se envolveu com política.

Contudo e apesar da aparência de novo o embate central ainda opera no âmbito da política tradicional e sua velha correlação de forças, oposição x governo, isso não some num passe de mágica, e por ora, essa ainda é a regra de jogo.

Agora que passamos da fase da perplexidade e do romantismo podemos afirmar: os movimentos que varrem o país apesar do formato multifacetado e inusual, têm um intervenção notável de forças conservadoras, e isso não esvazia o papel da esquerda que esta atuando nele, pelo contrário, é preciso ficar mais atento com as manipulações.

Não vou chamar indiscriminadamente todos os manifestantes de vândalos ou laranjas, nem não vou me espantar com chutes em janelas de sedes de governou ou vidros de agencias bancárias quebrados (isso é efeito colateral), muito menos me interessa apontar que existem criminosos dentre os manifestantes. A criminalidade é parte do desenho social.

O que me interessa são os movimentos estratégicos, o que esta no fundo. O verdadeiro embate que perpassa a política e é nele que percebo que o novo não predomina.

Quem opera nas sombras continua usando o argumento da criminalização dos movimentos sociais, só que agora capitaliza com o efeito causado por esses próprios movimentos.

O fascismo age sorrateiramente inclusive atacando seus braços armados, sua quinta coluna. E usando inocentes úteis. Reverte pra si o que pretensamente questiona as suas bases de existência.

O novo pode decepcionar demais quando começa a trabalhar para fomentar o que é velho. Não consigo enxergar de forma clara um movimento antihegemônico, anticapitalista, que questione a exploração e a desiigualdade, há indícios evidentes de um ultraliberalismo nisso tudo, e não por atacar o governo do PT, isso é conjuntural, mas pelas palavras de ordem que faz ecoar.

Na prática, a conquista do congelamento das tarifas foi a vitória mais expressiva até o presente, no demais das conquistas práticas, por enquanto, foi o tal “muito barulho por nada”. Mas é um barulho que incomoda e move (ou deveria mover) algumas convicções congeladas.

O próprio movimento precisa avançar na crítica ao Governo, nesse momento parece acompanhar de muito perto o discurso moralista da oposição. Novamente caímos no velho impasse governo x oposição ou PT x PSDB como querem alguns.

Uma parte esquerda entusiasta reclama que quem apóia o governo tenta deslegitimar tudo sob a ótica uma obsoleta leitura da realidade. Por outro lado, o que fazer com a infiltração clara de uma direita organizada nas manifestações? Ignorar, confrontar, se aliar táticamente? É preciso que isso fique claro.

Evidente que não podemos ignorar novas forças políticas e suas formas de articulação – que utilizam tecnologias de rápida comunicação e se organizam de forma horizontal – mas afirmar que as mesmas não estão atreladas à renitente luta de classes seria uma precária leitura da superestrutura.

Resta saber quais serão as consequências concretas do pós-junho de 2013: o reforço dos movimentos sociais, fim da desgastada dicotomia PT X PSDB, consolidação de uma nova esquerda ou de uma direita assumida?

Ou será que todos nós usaremos máscaras dos anônimos para continuar beneficiando quem sempre ganha o jogo?

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“A luta para entender os protestos não é luta só epistemológica, com jornalistas e teóricos tentando explicar seu “real” conteúdo: é também luta ontológica pela própria coisa, o que esteja acontecendo dentro dos próprios protestos”.

Slajov Zizek

O mês de junho de 2013 vai entrar para a história política do Brasil como um paradigma. Como farsa ou tragédia só a visão retrospectiva dará conta de dizer. A eclosão de manifestações deixou partidos políticos, movimentos sociais, mídia, intelectuais e a população perplexos. Todo mundo procurando o rumo e as reais motivações que levaram milhares de pessoas às ruas. Os motivos alegados variaram as colorações ideológicas idem, e as consequencias vamos viver intensamente nos próximos meses. Reuni pequenos textos que escrevi no Facebook durante nos meses de junho e julho. Vou postar aqui dividido por datas, mais para organização de registro do que para qualquer sistematização de pensamento, até porque a perplexidade e o vacilo aludidos acima, certamente estão no que escrevi.

14 de Junho via celular

A mídia fez vista grossa na chacina de retaliação ao suposto PCC, em Pinheirinho, na Cracolândia e agora tomou um literal tiro no olho. E o tiro no olho da mídia, óbvio, acertou o lado mais fraco, o trabalhador, quem escreve editorial continua intacto.

18 de junho via celular

O que aconteceu ontem nas ruas ainda é difícil de aferir. Fui até a Paulista, encontrei um terço da manifestação. Os transeuntes não envolvidos olhavam, tiravam fotos, sorriam, procuravam o jeito de ir embora (usando o sistema de transporte pivô da crise). A cidade viveu normal em paralelo. Pequena parte da cidade foi reclamar dessa parte, grande parte reclamava de um pacote genérico. Vi uma menina com cartaz contra a PEC 37, outro rapaz com uma máscara levava um cartaz anticapitalista. Eu não sei se esta geração tem rumo, pois eu mesmo não sei o rumo que tomo para entender essa geração. Cresci dentro de um mundo políticono qual partidos, programas e ideologia eram (são?) o menu básico. Se isso ruiu ainda não sei, pode ser que saibam por mim. O mais positivo de ontem foi a entrevista que dois líderes do MPL (Movimento Passe Livre) concederam ao Roda Viva. Os jornalistas insossos e sua ladainha costumeira tentaram colocar casca de bananas para o rapaz e a moça se estreparem, eles pularam e responderam com coerência mesclada a um travo de insegurança natural do momento e da idade. Tentar compreender o que nos incomoda é exercício duplo num mundo de acomodações.

20 de junho

Presidenta Dilma Roussef: é hora de se pronunciar, é hora de aglutinar forças e entender o que esta acontecendo, a fragmentação de análises pode criar uma situação incontrolável. Governo é pra governar.

20 de junho

Peço um favor aos caros amigos do Facebook: se você deseja um golpe, fomenta o desrespeito às instituições e coloca declarações racistas, homofóbicas ou preconceituosas em geral, me delete da sua lista. Peço com serenidade para garantir a sanidade de todos. E fique à vontade para me deletar por conta das minhas ideias.

26 de junho

A votação da PEC 37 no fim da noite de ontem foi emblemática. A votação da bancada do PT (que fechou voto contra) surpreendeu, decepcionou muita gente. Promotores e procuradores que ocuparam as galerias do Congresso comemoraram. Também no dia de ontem a Suprema Corte dos EUA revogou após 50 anos a Lei de Direito ao Voto. Essa lei estabelecia regras de votação nos Estados onde era detectada a discriminação racial, agora cada Estado controla o seu processo. A coincidência entre esses dois fatos é a aposta que se faz na autonomia e amadurecimento das instituições. No caso do Brasil, o Legislativo chancelou ao Ministério Publico o direito de investigar (sob regulação própria e sem interferência externa) crimes. No caso dos EUA o Judiciário concedeu aos Estados total autonomia e controle sobre o processo eleitoral. Fica uma pergunta direta: confiamos em nossas instituições? Eu poderia fazer essa pergunta em inglês, mas estou no Brasil.

26 de junho

A greve do dia 01/07 não tem pé, nem cabeça, nem pauta, nem motivo, nem nexo. Greve para reivindicar o quê? E o pior é que tem gente de esquerda preocupada com greve chamada por um anônimo que nem consegue explicar o que é greve?

01 de julho

Pela quarta vez acompanhei as manifestações nas ruas que começaram mês passado. Duas delas foram a SP e duas aqui em SBC. Muitos boatos marcaram esse tal dia de greve geral. Na semana passada participei de uma reunião com coletivos de esquerda aqui do ABC e a informação que se tinha era que aqui na região o “Anonymous ABC” havia chamado às manifestações. Foi marcada uma aglutinação de forças de esquerda para marcar posição nas ruas. Hoje por volta das 18hs começou o movimento de pessoas em torno do Paço Municipal SBC. Em sua maioria eram coletivos anarquistas, jovens convocados pela internet (Anonymous) e os coletivos de esquerda (partidos, movimentos sociais, etc.). No início houve um princípio de bate boca para que fossem excluídas as bandeiras dos partidos, de fato não apareciam, mas os símbolos da esquerda prevaleceram em parte dos cartazes e bandeiras. As cores vermelha e preto prevaleceram. A manifestação saiu do Paço Municipal rumou pela Lucas Nogueira Garcez, seguiu pela Anchieta, voltou pela Rua Vergueiro para chegar ao Paço Municipal novamente, cerca de duas horas e meia depois. Cerca de cinco mil pessoas participaram. No final confronto, bombas de efeito moral, correria e tudo adequado para a imprensa chamar uma manifestação plural de vandalismo. As pessoas estão nas ruas e não devem sair tão cedo. Parece que tem gente que ainda não se convenceu disso.

04 de julho

PSDB, Demos e PPS e, claro, o PMDB contra o plebiscito, mas o que eles propõem para dar respostas ao clamor das ruas? Ou era apenas fingimento a indignação da oposição? Quanto pior, melhor?

08 de julho

Nos últimos dias o propalado “silêncio do Lula” segue incomodando os veículos de comunicação e suas trombetas monocórdicas. Ciosos de criticar a “língua solta do ex-presidente”, agora reclamam da falta de sinais. O Estadão já está convicto que Lula é candidato e que Dilma fracassou. Tudo é afirmado e refutado, sem que seja feito o básico em jornalismo: ouvir o outro lado. Parece que o silêncio de Lula incomoda a mídia porque assim ela tem que ficar ouvindo o eco das próprias besteiras que publica.

24 de julho

O mantra coxinha lapidar:

“Nem direita, nem esquerda. Estamos à frente.”

Mas pode chamar de “retorno ao grande nada.”

25 de julho

Em tempos de neoudenismo fazer política parece um exercício de maldade. Sim, o termo “política” esta associado a coisas ruins, mazelas, falcatruas. Parte do jogo confirma essa sensação, mas não é fora do campo da política que vai se superar isso, e nem todo campo da política é permeado por essa negatividade. Mas é mais fácil negar tudo para criar uma falsa ruptura. “““ ““Todos os argumentos levam para algo “fora da política” ou que negue a” velha” política em benefício da “nova” política. Pergunta de incauto: o que é e onde está esse novo??

julho 075

Ontem a noite o frio cortava fino. Há tempos não tinha essa sensação. Frio cortando o rosto, desprotegendo, natureza nos invadindo, nos compelindo à proteção.

Entrei no trem na Estação Tamanduateí. Vento encanado na plataforma, mais frio. Na contramão, quase me atropelando, passou um fiozinho de gente, um menino de uns 12 anos. Camisetinha puída e jeans velho, uma caixinha de chocolate aerado na mão pra vender nos vagões.

Ele corria da guarda ferroviária, corria pra entrar no outro vagão, corria da vida. Frio, e eu, com minhas malhas e jaquetas preparadas. Frio.

Para nós, na maioria das vezes, o frio é apenas uma mudança de ventos e umidade que incomodam. Para aquele menino o frio era a urgência da mudança de vagão.

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Ontem a tarde perdi um amigo. Eu vi essa pessoa apenas uma vez num encontro coletivo de fraternos do twitter, porém nossas conversas síntese em 140 caracteres foram várias. Seus comentários irônicos, sua sagacidade e um certo desapego por “ganhar debates” deixava sua inteligência mais livre para tuitar.

Conhecer alguém apenas por textos em redes sociais pode não ser o bastante, mas as características percebidas revelam uma essência e faz diferença.

Ele usava uma alcunha @senshosp, e quando o conheci, se não me engano, seu avatar era uma foto clássica do Mao Tsé Tung. Falava da China, da Coréia do Norte, mas isso não tinha nada a ver com suas posições de esquerda, era muito sutil para ser tão evidente.

Narrava jogos de futebol em estilo nonsense, era um acontecimento em meio aos comentários extremos dos apaixonados pela bola, um contraponto. Cozinhava em casa e tuitava dizendo que faria os pratos para sua constante convidada imaginária, Dilma Vana, de tão leve tudo parecia real.

Ontem sua morte foi anunciada no twitter, centenas de tuiteiros se manifestaram carinhosamente, não eram meros avatares e seus menes, eram pessoas que o conheciam ou não o conheciam pessoalmente, usavam os 140 caracteres para expressar carinho, consternação e proximidade.

Rodrigo Manzano nos deixa jovem demais, 35 anos. Era um competente editor e professor universitário, muito querido por amigos e alunos. Pra mim ele foi o @senshosp, não uma arroba, um nick, mas uma pessoa com a qual compartilhei idéias, dúvidas, certezas e momentos bacanas.

Boa viagem, camarada!!

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Ontem um amigo me fez uma pergunta complicada, daquelas que você hesita em responder não por dúvida ou excesso de cuidado, mas por medo da própria resposta:

– Qual o futuro das bibliotecas publicas?

Não vou reproduzir aqui a resposta, ela não está congelada, ela pode ter mudado durante a noite, ela pode mudar a qualquer momento. O que vou fazer é mudar o rumo temporal da pergunta:

– Qual o presente da biblioteca pública?

A pergunta acima que deve ser feita a todo um Brasil que se apresenta plural nas ausências e nas acomodações, diverso nos improvisos e nas distorções, múltiplo em histórias criativas e exemplos isolados. Exemplos esses que mais aprofundam a dificuldade de uma solução integradora do que a fomentam.

Mas não é só de desesperança que vivemos na área de bibliotecas, e se a ideia é construir  um futuro distinto desse presente, temos que nos aprofundar nele (no presente) para avançarmos.

Presentificação.

Um dos passos fundamentais é olhar para quem hoje, de fato, trabalha e atende nas bibliotecas públicas. Que profissional que entrega para a população o cartão de visitas da dimensão pública da leitura e da informação em nossas bibliotecas?

Quando falamos em novos modelos de bibliotecas públicas, muitos detalhes e um amplo arcabouço de projeções e idealizações vêm à tona. Móveis, cores, equipamentos, iluminações, estudos sobre luz natural, sinalizações, gadgets, setorizações, acervo, sistemas de controle de acervo, a deficiência na coleção de livros e demais documentos, o acesso insuficiente à internet, etc. A figura humana aparece, nessa escala de destaques e prioridades, como um apêndice, um detalhe a ser encaixado, sua atuação e seu papel muitas vezes têm menos destaque do que a decisão de derrubar ou não uma parede ou a mudança de posição de um móvel. Quem atende dentro de uma biblioteca fica esquecido no meio das projeções do seu crescimento físico e arquitetônico.

Vamos voltar ao presente: a pessoa, o profissional que atua nas bibliotecas públicas, hoje, é o centro, o motivo do receio que me fez temer uma resposta de chofre ao meu amigo. Muito simples seria elencar as precariedades e as carências que cercam este indivíduo: a falta de qualidade no atendimento, a total incompreensão das múltiplas possibilidades da mediação (aliás, qual mediação?) a alienação sobre seu papel social, a falta de apetência para a empreitada.

Estas constatações bastam? Evidente que não bastam. Ao seguir esse caminho, cometeria o erro crasso de nem olhar para o futuro, nem me ater ao presente, e me fixar inócuamente 
no passado. Apontaria caminho nenhum.

A biblioteca pública surgiu no Brasil fugida, escondida, fatiada, e tão somente como patrimônio a ser preservado. O Rei de Portugal a trouxe na bagagem para protegê-la da destruição, da invasão napoleônica. Importada, comprada e incorporada a uma simulação de biblioteca nacional. Este DNA é exemplar: algo que surge, que se inventa escondido, merece o nome de público?

E este início de história não deve ser encarado como chiste, como piada. A Biblioteca Nacional nasceu portuguesa, veio da Corte, vamos assumir esse legado tal como ele é. E aqui, novamente, não é o caso de se fixar no passado, o presente segue confirmando esta instituição provisória, escondida, quase clandestina e patrimonialista. O que parece é que as bibliotecas públicas estão sempre prontas para voltar com seus reis perdidos para algum portugal imaginário.

O mais irônico é que o rei não estava tão perdido assim, ele sabia o que estava fazendo, mas a biblioteca que herdamos continua se perdendo.

A biblioteca pública que se fundou no país "não pública" e legou isso aos seus atores dos vários momentos históricos, enfrentou outras intempéries durante o tempo e continua buscando sua identidade. 

É importante e justo ressaltar que dentro dessa trajetória de atropelos e precariedade , existem exemplos de vitórias e êxitos, e não são poucos. Porém, eles não se fixaram como modelos e não se constituíram como política pública. A biblioteca pública é resistente porque ocupa um hiato enorme: a falta de espaços públicos e abertos. Se existe um lugar de onde você nunca será expulso é uma biblioteca pública. A desvalorização do que é público paradoxalmente deu força à biblioteca e alivia seu problema identitário.

É preciso destacar uma prioridade, o momento, voltando ao hoje, é de inventar, de dar poesia ao ser humano que atua nas bibliotecas públicas. Algo urgente e inadiável é priorizar a figura do mediador em biblioteca, o elo entre o público e a informação.

Sim, mediador, pois todo o profissional que atua numa biblioteca, independente de estar nas funções técnica, administrativa ou de atendimento, atua como mediador e, no mínimo, como suporte para a mediação, esse é o fim e não o meio, o humano na ação dialogica, no contato com outro, o estímulo à leitura e à construção do conhecimento.

Vou terminar não mais fugindo da resposta ao meu amigo, resolvi revelar essa resposta, não a de ontem, mas uma factível, presente, de hoje, não quero simular uma fuga redentora como o Rei de Portugal o fez, ele e sua Real Biblioteca, portanto volto à pergunta inicial:

– Qual o futuro da biblioteca pública?

Respondo:

– O futuro da biblioteca pública é investir, desde já, no presente, no agora, na formação de mediadores de leitura e informação, é colocar nas bibliotecas a vida e a diferença que faz o dialogo e as buscas conjuntas que dão sentido ao imobilismo das estantes organizadas.

Por que não um Programa Nacional de Formação de Mediadores que agregue todos os profissionais, instituições e organismos envolvidos na questão da leitura? MINC, MEC, União, Estados e Municípios, Universidades, juntos para retirar a biblioteca pública do seu eterno portugal abandonado.

Por ora, é um caminho apenas sugerido, a ser debatido, desvelado, construído, é o obvio que não se revela óbvio, é o futuro calcado na urgência de um presente, destacando que se esperarmos muito, voltamos rápido ao passado incerto.

Quero já o "Programa Nacional de Formação de Mediadores". Admito que é um ideia vaga ainda, mas se olharmos atentamente o nosso tempo presente, a nossa realidade, já teremos um bom material para começarmos a luta.

Quem se habilita a ajudar a dar essa resposta para o futuro?

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Junho de 2013 entra para a história política do país, queiram ou não queiram os contrariados. E há contrariados de todos os lados. O mês citado trouxe um movimento nas ruas e desdobramentos intrigantes em vários aspectos:

– Negou partidos e bandeiras da esquerda ao mesmo tempo que afirmou que a sociedade precisa de mais Estado (saúde, educação, transporte público). Governo e oposição se colocaram em meio às contradições, ambos de forma atabalhoada, mas é inequívoca a visão que cada parte tem do papel do Estado;

– acendeu os movimentos subterrâneos de direita colocando nas ruas o que víamos há muito tempo em sites escondidos nos domínios estrangeiros, ao mesmo tempo que fez a esquerda sair do imobilismo e, timidamente, mostrar algum alinhamento de tendências (partidos e movimentos sociais) em torno de pontos em comum;

– cristalizou um sentimento de contrariedade e repulsa à mídia (concentrado na Rede Globo) dando concretude a movimentos e trazendo à tona fatos que tiraram a emissora do seu castelo de cristal (o laser verde no rosto do apresentador do SPTV ontem foi emblemático; o tema reforma e democratização da mídia, ainda que de maneira difusa, se deslocou do discurso de uma minoria;

– atiçou os pensadores (de diversas tinturas) a tentar entender os movimentos de um país aparentemente sem movimento, as ruas na sua maneira desorganizada, em parte manipulada, mas sem dúvida real, colocou o pensamento crítico em apuros e o tirou da assepsia acadêmica e das fronteiras confortáveis onde se escondia;

– colocou os partidos políticos e políticos na posição incomoda de “Geni” de um sistema de cartas marcadas, tal fato não é novo, mas se diluía em xingamentos genéricos, a classe política assumirá o ônus das mazelas do país ou reagirá? 2014 é um bom termômetro para responder a essa indagação;

– colocou no centro do debate político a reforma política, quem a nega e quem não quer fazê-la ficou defenestrado e os argumentos, se observados com o mínimo de equilíbrio, revelam a radiografia da nossa morosa transição democrática e a lógica e perversões claras e pragmáticas do poder econômico que comanda a agenda política desde de sempre.

Evidente que me fugiram nuances e detalhes. O momento é de expandir fronteiras e sair do campo de proteção, o que induz a erros e amplia as dúvidas. Sem deixar cair na sedução delirante de que a política foi fundada no país em junho de 2013, tampouco dormir no sono embalado daqueles que querem ignorar o que acontece ao redor.

junho 004