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Arquivo mensal: agosto 2017

Sócrates Brasileiro e Clarah Averbuck, figuras públicas.

O primeiro, já falecido, foi brilhante jogador de futebol, politizado, posicionado na cancha e na vida. Clarah é escritora e ativista, polêmica, ácida e também posicionada.

Não conheço pessoalmente a escritora, nem conheci Sócrates. Assisti, li e esbarrei nas redes sociais.

Nessa manhã li uma entrevista com Katia, a última companheira de Sócrates, na qual ela descreve os últimos dias do Magrão. A agonia e as derradeiras palavras. Katia relata também o preconceito que Sócrates sofria por ser alcóolatra e os ataques que ele recebidos por estar na fila de transplante de fígado na qual teria privilégios que efetivamente nunca recebeu. Não era mais mais Sócrates, era o alcoolatra inútil na voz e no dedo dos acusadores.

Os mesmos dedos que hoje acusam Clarah Averbuck. No final de semana ela foi estuprada por um motorista do UBER. Literalmente o estuprador enfiou o dedo em Clarah (palavras dela). O motivo? Ela estar bêbada e com roupas curtas. Mulher, sozinha, embriagada, voltando para casa de madrugada não merece ser respeitada. Clarah contou a história no facebook. A mesma horda que atacou Sócrates ataca, acusa, aponta o dedo inquisitor e infesta a sua caixa de comentários. A mulher que ousa gritar a violência contra si.

O alcoolatra e a vagabunda. Julgados. Não importa a vida, o todo, as virtudes e as falhas, um adjetivo basta pra definir, catalogar, resumir.

Li que Clarah há tempos acolhe em sua casa para diálogo e orientação várias vítimas de estupro e assédio. Sócrates lutou bravamente para um Brasil democrático. Mulher e homem de luta. Até quando o tribunal vulgar julgará aqueles que expõem a própria pele à luta?

Solidariedade às clarahs e aos sócrates de nossos dias.

Uma das diversões que prezo na vida é imaginar trilhas. Trilhas da vida. As canções estão prontas. São variadas, adequadas, se encaixam, contrastam, incomodam, chamam à reflexão. Algumas são soberanas. Habitam os dias de sol, chuva, frio. Não são tristes, nem alegres, são definitivas.

I know there’s something much more,

something even non-believers can believe in.

I believe in love, Alfie.

Without true love we just exist, Alfie.

“A poesia brota do real” – conheci o escritor Carlos Felipe Moises em 2011 no projeto MundoLivro na Biblioteca Monteiro Lobato SBC.

Carlos Felipe foi na biblioteca falar de poesia, de Mario de Andrade, aquele que o fez descobrir e inventar o jeito de ser poeta.

” Todo poeta aprende poesia com outro poeta” – ao falar de Mario, ele terminou falando de São Paulo, de andanças pela cidade, de amor por suas ruas e tipos. A tarde voou, o público adorou e interagiu. A mediação perfeita.

Um cara simpático e generoso o Carlos Felipe. O poeta fã de Mario, da cidade de Mario, faleceu hoje à tarde.

 

Lá vem o lança-chamas

Pega a garrafa de gasolina

Atira

Eles querem matar todo amor

Corromper o pólo

Estancar a sede que eu tenho doutro ser

Vem do flanco, de lado

Por cima, por trás

Atira

Atira

Resiste

Defende

De pé

De pé

De pé

O futuro será de toda a humanidade

 

Oswald de Andrade

 

Viver a cidade é algo diverso, cheio de possibilidades. Existe a cidade coletiva que dividimos e disputamos. A mesma cidade pode ser intima, amiúde, internalizada. As duas se relacionam, se confundem, estão em nós e no outro, a mais nobre política se define nas tristezas e alegrias, nas decisões e vacilos da cidade.

Como diz David Harvey  a construção e a reconstrução das pessoas e da cidade se equivalem, e esse é o mais caro e o mais negligenciado dos direitos humanos.  Cada movimento público ou privado que desconsidere e impeça a possibilidade de decidirmos o destino das ruas em que andamos e vivenciamos as historias do dia a dia, é violência, é pavimento para a barbárie.

Um dos meus jeitos de vivenciar a cidade é fotografando, é o jeito individual e introspectivo. As vezes dividido, as vezes apenas íntimo. Escolho lugares, objetos, pessoas, composições. Um desses lugares é o Elevado João Goulart, o Minhocão. Aleijão, excrescência para alguns, funcional para a logica privada do carro, disfuncional para quem vive ao redor, útil para os desabrigados, espaço de lazer e convivência quando fecha no final de semana. É um rico manancial de imagens, desativado ou funcionando.

Num antigo Instagram que já desativei fiz uma série de fotos que dei título de “Nos Baixos do Elevado”, óbvio que retratei a parte baixa e os arredores do concretão. Os comentários de amigos e desconhecidos eram curiosos e expressavam a ambiguidade do Elevado para quem olha a cidade de formas diferentes. Uns diziam que eu corria perigo, outros não entendiam o sentido de eu fotografar “aquele aleijão”, outros tantos se surpreendiam com a beleza escondida.

O Elevado pode definir São Paulo e suas práticas. Inaugurado em 1971 de forma arbitrária, sem consulta, sem a anuência das pessoas, na ditadura e na lógica da corrupção de concreto e cal. A despeito de tudo isso, ele é parte da cidade, parte de sua crueza.  Com o passar do tempo as pessoas foram reinventando usos e olhares sob o Minhocão. Nos finais de semana caminham, andam de bike, se reúnem, fazem pic nic, passeiam. Toda essa gente que vive à sombra do concreto, usa o concreto para aliviar a solidão e a falta de opções de lazer e espaços de convivência que a cidade nos impinge.

O tempo corrói o concreto, vigas e as ferragens, ao mesmo tempo que recrudesce o autoritarismo. Em 2017, quarenta e sete anos depois da sua imposta inauguração, o Elevado que foi Costa e Silva e que acertadamente se transformou João Goulart, tem mais um capítulo do autoritarismo inscrito em seu gigante corpo. A gestão do Prefeito Dória sob os auspícios do Ministério Público, mandou colocar portões de ferro para restringir o uso de pedestres nas horas de lazer inventada pela cidade. É o coroamento da imposição que fez nascer a construção que vai do Largo Padre Péricles até a Praça Roosevelt.

Há justificativas para o portão de ferro, algumas até plausíveis, o que não desmancha o caráter autoritário e confinatório do ato. Contestar a existência, os modos de uso, revisar seus fluxos, decidir novos caminhos para o Elevado, será sempre legítimo. Porém a marca de imposição nessas decisões fica sempre patente, seja em 1971 na sua construção (Maluf, milicos, concreto) , como nas restrições do seu uso (Dória, promotoria, portão).

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Por que se tolera e fomenta a “cadela fascista” (o termo é do Brecht, é bom avisar pra evitar ataques normativos)?

A ira neonazista descarada, os PMs bolsonaristas, os livres pensadores data vênia (do MP e STF), os filhotes de Narloch, Olavo de Carvalho, antes exóticos agora comparados à demiurgos do Brasil, os twitteiros e youtubers deformadores e os discípulos de Hayek e Mises, não saíram do nada e operam dentro de uma lógica.

Por mais que os pensadores avançados da esquerda queiram vencer a batalha simbólica antes da vulgaridade eleitoral, as eleições vão ser o grande passo legitimador do golpe e da hegemonia direitista. Foi assim com Trump nos EUA, com Dória em SP, venceram nas urnas. Simbólico e material se juntam num movimento rápido, quem parar pra separar o joio do trigo será atropelado.

A marcha galopante da direita deslavada reforça um temor que funcionou perfeitamente no pleito francês. Macron, um ultraliberal, surgiu como alternativa racional à Marine Le Pen, ultradireitista. É o mesmo fenômeno que coloca o opus dei Geraldo Alckimim como opção da “direita civilizada” na eleição de 2018, o que prova ainda mais busca de uma legitimação eleitoral.

É nesse sentido que as demonstrações explícitas e violentas de nazismo, a iconoclastia contra símbolos da esquerda, a violência contra minorias, a blitzgrieg da escola sem partido nos municípios, o revisionismo histórico e as demais saídas à direita são toleradas e bem vindas por uma certa direita liberal.

A ultradireita conquista seus espaços no grito e no susto, derruba bandeiras históricas da esquerda, emplaca leis e regulamentações que até há pouco eram impensáveis e nessa escalada cria a demanda por uma direita mais civilizada. Tudo tão democrático e limpinho.

Tenho medo, pavor do saudosismo. Volta e meia me flagro voltando. É recurso, é saída, desafogo.

Quando olhamos pra trás, reinventamos, reciclamos, viramos ao avesso, redefinimos fatos, omitimos.

O passado muitas vezes é cúmplice dos desesperos do presente.

Quinta feira última, madrugada, saímos eu e o João Luiz Marques de um evento na Praça Roosevelt, frio, o frio de São Paulo.

Não foram poucas vezes que estive naquele lugar, em tantas outras madrugadas. Saímos da Roosevelt, e no caminho curto até a esquina da Araújo com a Consolação, vários pedintes, três, quatro, cinco rostos tristes, desesperados, ameaçadores. Pedindo comida, dinheiro, atenção, aquelas histórias todas juntas largada na rua.

Senti saudade de um medo antigo, medo de atravessar aquelas mesmas ruas, receoso de assalto, de violência, mas que não me impediu de conhecer cada palmo do centro em várias madrugadas.

Hoje, o medo é outro. Ele vem carregado de uma miséria maior, mais que pensada, planejada. Aqueles pedintes não são inimigos, mas são o nosso medo coletivo.

A madrugada acabou num UBER de volta pra casa. Protegido no vazio social do UBER.

“Sampaio – Mas você acha que te consideram maldito, ainda?

Melodia – Eu sou maldito. Sou cria do Morro do São Carlos. Não reparem nisso, não! Cria do Morro do São Carlos. Já antes de fazer música, antes de tudo, todos os quilombos já eram malditos. Então, pronto! Só que faço música. Acho que faço músicas legais.”

O Dafne Sampaio e uma turma boa turma mantinham um site de entrevistas chamado “Gafieiras” no comecinho desse século. Deixou saudade. O trecho acima é de uma entrevista do Luiz Melodia no Gafieiras em 2002. Uma resposta ao rótulo de maldito.

Maldito é o país que nutre essa pecha de malditos, que cultiva exclusões.

A música brasileira é quase toda negra. O que não é, deve tributo. Dizer isso não é resgate ou concessão, é puramente se reportar aos fatos. Os compositores negros de Joaquim Callado a Emicida fizeram a forma e a forma da música brasileira.

Rotular os malditos é uma oportunidade da indústria colocar na caixinha quem não se entende dentro dela. Itamar Assumpção vociferava, Macalé manda se lascar, Melodia na resposta acima até que foi doce.

Em dado momento (anos 80, 90) falar de maldito era charmoso, só não combinavam com o artista. Maldito não tocava no rádio , como falar disso hoje?

Nunca mais usei o rótulo maldito, no entanto muita gente insiste. Com a morte de Melodia essa discussão retornou. Passou da hora de parar de amaldiçoar nossa gente.

Foto do Dafne Sampaio