Lá vem o lança-chamas
Pega a garrafa de gasolina
Atira
Eles querem matar todo amor
Corromper o pólo
Estancar a sede que eu tenho doutro ser
Vem do flanco, de lado
Por cima, por trás
Atira
Atira
Resiste
Defende
De pé
De pé
De pé
O futuro será de toda a humanidade
Oswald de Andrade
Viver a cidade é algo diverso, cheio de possibilidades. Existe a cidade coletiva que dividimos e disputamos. A mesma cidade pode ser intima, amiúde, internalizada. As duas se relacionam, se confundem, estão em nós e no outro, a mais nobre política se define nas tristezas e alegrias, nas decisões e vacilos da cidade.
Como diz David Harvey a construção e a reconstrução das pessoas e da cidade se equivalem, e esse é o mais caro e o mais negligenciado dos direitos humanos. Cada movimento público ou privado que desconsidere e impeça a possibilidade de decidirmos o destino das ruas em que andamos e vivenciamos as historias do dia a dia, é violência, é pavimento para a barbárie.
Um dos meus jeitos de vivenciar a cidade é fotografando, é o jeito individual e introspectivo. As vezes dividido, as vezes apenas íntimo. Escolho lugares, objetos, pessoas, composições. Um desses lugares é o Elevado João Goulart, o Minhocão. Aleijão, excrescência para alguns, funcional para a logica privada do carro, disfuncional para quem vive ao redor, útil para os desabrigados, espaço de lazer e convivência quando fecha no final de semana. É um rico manancial de imagens, desativado ou funcionando.
Num antigo Instagram que já desativei fiz uma série de fotos que dei título de “Nos Baixos do Elevado”, óbvio que retratei a parte baixa e os arredores do concretão. Os comentários de amigos e desconhecidos eram curiosos e expressavam a ambiguidade do Elevado para quem olha a cidade de formas diferentes. Uns diziam que eu corria perigo, outros não entendiam o sentido de eu fotografar “aquele aleijão”, outros tantos se surpreendiam com a beleza escondida.
O Elevado pode definir São Paulo e suas práticas. Inaugurado em 1971 de forma arbitrária, sem consulta, sem a anuência das pessoas, na ditadura e na lógica da corrupção de concreto e cal. A despeito de tudo isso, ele é parte da cidade, parte de sua crueza. Com o passar do tempo as pessoas foram reinventando usos e olhares sob o Minhocão. Nos finais de semana caminham, andam de bike, se reúnem, fazem pic nic, passeiam. Toda essa gente que vive à sombra do concreto, usa o concreto para aliviar a solidão e a falta de opções de lazer e espaços de convivência que a cidade nos impinge.
O tempo corrói o concreto, vigas e as ferragens, ao mesmo tempo que recrudesce o autoritarismo. Em 2017, quarenta e sete anos depois da sua imposta inauguração, o Elevado que foi Costa e Silva e que acertadamente se transformou João Goulart, tem mais um capítulo do autoritarismo inscrito em seu gigante corpo. A gestão do Prefeito Dória sob os auspícios do Ministério Público, mandou colocar portões de ferro para restringir o uso de pedestres nas horas de lazer inventada pela cidade. É o coroamento da imposição que fez nascer a construção que vai do Largo Padre Péricles até a Praça Roosevelt.
Há justificativas para o portão de ferro, algumas até plausíveis, o que não desmancha o caráter autoritário e confinatório do ato. Contestar a existência, os modos de uso, revisar seus fluxos, decidir novos caminhos para o Elevado, será sempre legítimo. Porém a marca de imposição nessas decisões fica sempre patente, seja em 1971 na sua construção (Maluf, milicos, concreto) , como nas restrições do seu uso (Dória, promotoria, portão).