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Arquivo mensal: outubro 2015

Antigamente eu morria

antigamente eu amava,

antigamente eu sabia,

qual é o chão que resvala

se o passo da gente pesa.

Hoje que sou homem leve,

sem dinheiro, sem altura, 

e tenho a boca entreaberta,

olhando o incêndio do mundo,

vejo a certeza mais certa:

eu cavo sempre no fundo!

(trecho final do poema “Antigamente”)

Eu sou um cara envergonhado. Sim, eu falo pelos cotovelos, defendo as minhas ideias até o fim, mas tenho meus instantes de timidez e eles aparecem sempre. Nunca tinha participado ativamente de um sarau. Tenho na memória vários trechos de poemas, pedaços de contos dos outros, e até contos meus, que poderiam ser lidos pela vida, mas e a coragem? O dia veio de participar veio…e veio recheado de surpresas.

Foi no Centro de Formação do SESC que eu falei o meu primeiro trecho de literatura, que fiz  uma leitura em um sarau. Claro, que tinha que ser um trecho do João Antônio, o escritor paulista que me deu o tino para ler e amar literatura cada vez mais na vida. Mas o dia que eu li pela primeira vez literatura num sarau foi dia mas importante que a quebra da minha timidez, demorei um pouquinho pra sacar.

O tal sarau do meu debut era pra fechar um seminário, que teve gente forte que faz e debate literatura – Seminário de lançamento do livro “Africanidades e relações raciais: insumos para políticas públicas na área do livro, leitura, literatura e bibliotecas no Brasil” – organizado pela Cidinha Silva, intelectual, escritora e militante das causas do livro e leitura.

E tava eu lá no meio de gente bamba como professor e crítico Mário Medeiros Silva, da professora e pesquisadora Mariana Assis, da escritora e pesquisadora Esmeralda Ribeiro, da psicologia Maria Aparecida Bento, da socióloga Neide Almeida, da escritora Miriam Alves, do poeta e ativista Ruivo Lopes, o convite para participar foi da Bel Santos Mayer, psicopedagoga e formadora de mediadores de leitura. Dia de honras, dia de descobertas.

Como disse a descoberta não foi no meu debut, ela veio no final de tudo, foi no fechamento do sarau de fechamento do seminário, liderado pela escritora Raquel de Almeida e pelo Ruivo Lopes, e não foi na hora que eu falei um trecho do conto “Meninão do Caixote” do João Antonio, não foi na minha estréia, foi na intervenção da Neide Almeida que falou bonito um poema chamado “Antigamente” do escritor, jornalista e ativista do movimento negro Oswaldo de Camargo. Tinha ouvido falar muito e lido esparsamente a obra do Oswaldo, mas certamente nunca tinha o recebido de forma tão lírica e bonita e tão cheio de possibilidades…

E me ocorreu uma ideia, primeiro pensei, ruminei e rápido compartilhei, de primeira ali no dia com a própria Neide, depois, pelo telefone com o jornalista e parceiro no Grupo de Trabalho do PMLLLB (Plano Municipal do Livro, Leitura, Literatura e Biblioteca), Flavio Carrança. Logo, eu cheguei no editor da Ciclo Contínuo (relevante editora da produção negro brasileira), Marciano Ventura, que já havia sido parceiro numa homenagem à escritora Maria Carolina de Jesus, que fizemos na Câmara Municipal em 2014, e, coincidência ou não o Marciano estava justamente terminando de editar um livro de memórias do Oswaldo, fechamos nova parceria, a ideia…iluminando.

Enfim, a ideia seria homenagear o Oswaldo de Camargo com o título de Cidadão Paulistano, um consistente título, para um dos fundadores do Movimento Negro Unificado, para quem contribuiu para a consolidação da imprensa negra, para um dos líderes das associações de negros nos anos 50, para um homem que publicou, debateu, influenciou e lutou muito para consolidar a literatura negro brasileira, como ele mesmo diz, um persistente que faz política com delicadeza, e com isso conquistou muitos avanços. Tudo a ver com a construção do Plano do Livro e Leitura.

Burilei as formas de fazer junto com o Marciano, dividi as ideias com a minha companheira de trabalho, a Lucinha (que abraçou com carinho a parada), consultei a nossa coordenadora do gabinete , a educadora Cida Perez, que levou o assunto ao nosso chefe, o Vereador Antonio Donato , ficou devidamente topado. A história de Oswaldo de Camargo e o Plano Municipal do Livro, Leitura, Literatura e Biblioteca, eram complementares, um homem de luta junto da luta por uma política pública para a democratização do livro e leitura na cidade, da qual o próprio já é cidadão ativo há muito tempo, mas carecia de uma homenagem, uma afirmação, uma celebração.

Na essência foi a literatura, a leitura e a política que fizeram culminar esse dia, foram elas que rechearam o primeiro papo direto que eu tive com ele na Galeria Metrópole para acertar detalhes, ali no centro da cidade que o homenageou ontem. Na ocasião  os olhos dele brilharam e entenderam que era mais que uma homenagem pessoal,  os meus também é muito provável, as afinidades eletivas que construíram esse encontro e deram razão à homenagem.

Vicejaram as forças e passados alguns meses, veio o dia de ontem, 27 de outubro de 2015 chegou para o Oswaldo, aliás, chegou para muita gente que esteve no Salão Nobre da Câmara Municipal para fortalecer a homenagem ao escritor Oswaldo, sua comunidade de ideias, ativismo paixões e causas em comum.

E o dia especial da outorga foi recheado de luminares da literatura negro brasileira, estavam lá praticamente todos que eu citei acima, somados aos escritores Abelardo Rodrigues e Luiz Silva (Cuti), a poeta cubana Mirta Portillo, ao poeta e rapper Fuzil Deeanto,  às pesquisadoras e profundas conhecedoras da obra e importância de Oswaldo, Moema Parente Augel e Ligia Fonseca Ferreira, o pesquisador Ricardo Riso, aos filhos e companheiros de trajetória do associativismo negro, da igreja católica…tanta gente que eu possa ter esquecido, mas que não esquecerá esse dia, Oswaldo é de fato um elo inter geracional de múltiplas linguagens.

Tentei contar aqui uma pequena história dentro de uma grande história. A historia de Oswaldo de Camargo que fez historia e ajudou a consolidar a história da literatura negro brasileira, que é parte grande da história da literatura e que vai marcar a história dos livros e das leituras desses tantos nomes que eu citei e de tantos que ficaram de fora pelas falhas de memória e esquecimento, mas estão vivos na luta que que homens como ele estabelecem pela diversidade inclusa apenas nas grandes histórias das letras e de vida.

O Jardim Umarizal é um bairro incrustado no Distrito de Campo Limpo, perto do Córrego Pirajuçara e da Avenida Campo Limpo, zona sul de São Paulo. Lá nasceu há 56 anos o Francisco Pinto Campos Neto. Tempos depois, Francisco passaria a ser chamado Tico e assim cresceu. Um dia ele iria escrever em contos as suas impressões do mundo. Mas antes a vida de Tico deu vários giros e voltas.

Tico foi internado várias vezes, morou nas ruas. Drogas, alcool e a insanidade  vivida e adquirida. Existem dois sistemas que marcam o indivíduo para sempre, o prisional e o manicomial. Ele soube bem do segundo e sempre que pôde lutou contra. Nessas idas e vindas Tico teve encontros com a leitura e a literatura, a  grande via de escape, os clássicos, o aprendizado, o veio e o verbo desenvolvido. 

A leitura e a literatura não são milagrosas, elas não salvam ninguém, nem redimem, quando muito ratificam. A vida foi dando o enredo para o que Tico escreveu. Veio das ruas, dos tipos do centro, da Cracolândia, dos corpos que vão e vem na CBTM, dos tristes, dos muitos lugares onde ele ando, da cidade escura que as pessoas ignoram ou que com ela se apavoram. Literatura de vida.

Tico apenas descreveu essa vida, o estilo, a verve guiaram o resto. A tal literatura se tornou o espelho em fragmentos de uma tradição marginal com a qual ele caminhava e que se uniria a um conjunto de novos e vigorosos escritores da periferia paulistana. Foi quando e onde que Tico em exercício de síntese eternizou os pedaços da sua imagem a tal tradição e vieram junto com ele, João Antônio, Wander Pirolli, Plínio Marcos, Austregésilo Carrano…Dostoievski.

Em 2010, ele perdeu a mãe e desandou, foi morar nas ruas, mais drogas e alcool, as barras do centrão. Colheu os frutos amargos, pirou, levantou. Uns tempos depois conheceu o Binho, que leva um sarau lá no Campo Limpo, pertinho de onde Tico nasceu, encontrou acolhida, afeto e continuou escrevendo.

Depois de debutar com um conto numa coletânea de escritores periféricos organizada pelo Ferrez na Editora Casa Amarela, ele lançou seu primeiro livro de contos, “Elas, etc” onde narra histórias de mulheres de periferia. Um perigoso exercício de ousadia e destreza ao narrar coisas de um universo alheio (o feminino) sem simular domínio, nem forçar o olhar.

O segundo, “Núpcias de Escorpião” (Editora Cíclo Contínuo), veio em 2012. É obra corrosiva, direta, clássico feito, que faz doer, revela e expõe carne, sangue, medo, danação. É trabalho de fôlego e de força, que certamente vai ficar, vale ler, reler, abre as portas para um universo particular, rico, triste e peculiar. Tico não mente nas letras.

Tico prometeu e já vinha escrevendo seu terceiro livro de contos…tinha uma peça e um novo romance começado…

….mas o pedaço do amplo espelho quebrou de vez na última terça feira, Tico nos deixou. Um caminhão na Régis Bittencourt, não se sabe como e por quê. Nenhum jornalão noticiou a morte do escritor Tico. A única notícia sobre o ocorrido saiu num site de um jornal de Taboão de Serra e dizia apenas que Francisco Pinto Campos Neto havia sido atropelado. Mas, a gente sabe bem que foi e quem foi o Tico e quem não sabe tem que saber. 

Adeus, camarada!