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Arquivo mensal: março 2020

Um pequeno conto da quarentena, que veio observado da janela:

  • É domingo, sábado?

Só sei que há poucos carros na rua e céu promete chuva. Pouca gente passa, saquinhos de supermercado na mão, alguns com máscara, os mais apressados correm; eu tô aqui nessa esquina todo final de semana, olho, vejo, guardo e jogo e limpo os vidros. Há quem me observe dos prédios, nada vale, as moedas não voam tão longe.

Não, eu não perdi a elegância, a magreza ajuda, a calça preta engana o uso de dias, as caminhadas pela cidade sem fim, mantém o corpo seco. Há pouco passou um casal e deixou uns trocados, elogiaram o shape, ri, pra não dizer como cheguei aqui, eles não queriam detalhes, ninguém quer os detalhes.

A cidade parou, mas a minha vida, a fome, os desejos, estão todos carregados aqui comigo. Uma senhora caminha no passo que pode, olha pra mim, doce, fala baixinho:

  • Precisa de alguma coisa, filho.

Quis falar, preciso, preciso sim, preciso renascer, rever tudo, aparecer de novo nesse mundo, ficar em casa (não é isso que tão dizendo agora, nesse tempo de coronga?), preciso de café quente, preciso ter para onde voltar, mas, calo todas as vozes:

  • A senhora vai no supermercado? Pode me trazer um pacote de qualquer biscoito recheado?

Ela sorriu, seguiu andando mais devagar, indo como se fosse o meu passado voltando ao contrário, devagar, calmo, cruel. Voltou com um pacote de Negresco (eu gosto muito), estendeu a mão mantendo distância, menos de um metro e meio, mas distante, eu agradeci, eu sempre agradeço, a senhora seguiu calada, silêncio simpático.

Lá vem chuva…

Quatro rapazes de bike, três barbudos, como eu, chegam junto, nas duas bikes da frente tem uma caixa de som, uma música que toca:

“Você! Se ligou que o Corona deixa na lona
O estrago veio à tona
O mal contamina a cada esquina
Mais sério do que se imagina
Só faz a sua parte que eu faço a minha
Não pense que é só uma gripezinha”

A voz eu conheço é o cara do Rio, o MV Bill, saquei rápido que era o troço do vírus, o cabuloso, que seca o pulmão, os barbudos me deram uma garrafa com agua e sabão, um pano limpo para secar, pessoal bacana, não chegaram perto, seguiram o caminho, com uma capas grandes de plástico, máscara, o barbão, pareciam camisinhas andantes.

A noite tá chegando, choveu à tarde aqui na Barra Funda, a esquina tá vazia, parece aqueles carnavais antigos, antes da zoada dos blocos, em que a cidade hibernava morria até a quarta feira, deve ser quase sete, deve ser…

Tem uma praça aqui, tem gente que dorme lá tudo junto, agora não dá, nesses dias não rola, não durmo lá não, vou me arrumar por aí sozinho, passar a noite sozinho. Hoje a minha cabeça tá um agito sozinho, merecia uma parada, não, não dá…tenho que seguir….

Queria que a cidade fosse todo o tempo assim, calma, vazia, mas preciso de gente, preciso de grana, o Brasil não pode parar, passou alguém gritando, porra parar como? Comigo não tem essa de parada, a rua não acaba nunca, é infinita a correria.

Meu bolso hoje tá vazio, preciso de um pouco mais. Fome, ainda bem que ainda não esfriou.

  • Já é segunda. Não tem começo, nem fim, tá sempre no meio.

Ontem no final da tarde, por volta das 18:00, saí para comprar pó de café e me deparei com uma cidade vazia, poucas pessoas circulando num horário que tradicionalmente as ruas estão cheias, com pessoas encerrando os seus expedientes ou se movimentando para mudar de atividade.

Esse e um vazio muito necessário nesse momento, quanto menos gente circula, menor a possibilidade de transmissão do Coronavírus, minoraram as chances de aumentar a tragédia anunciada pela experiência recente de outros países.

Porém, tenho que admitir que o olhar sobre a cidade esvaziando, apagando, me trouxe lembranças e um sentimento misto que fundiu tristeza e passagens importantes da minha vida.

Quando menino, as descobertas das ruas tiveram para mim uma importância, um fascínio, que determinou fortemente o adolescente, o adulto que veio a seguir. Cada rua, cada pedaço de quarteirão conquistado, era uma importante etapa de uma saga de passos, que me alimenta até.

Foram várias essas conquistas, tamanho e distância eram o que menos valia, o sabor vinha múltiplo com as situações que se juntavam àquelas ruas e quarteirões, às andanças, seus motivos, aos personagens e aos enredos que os trechos da cidade me concediam.

Lembro nitidamente de uma manhã de sol, tinha 11 ou 12 anos, que decidi ir no “campo do japonês” ou o “campão da Vila Tereza”, terrão do futebol de várzea sãobernardense, no qual o Clube Reunidas fazia seus jogos, na falta de jogos oficiais, a molecada tomava conta do pedaço.

Foi uma aventura, um desses episódios iniciáticos, cada rua, cada lugar, casa, pessoa que eu encontrava no caminho, era um novo trecho de um mundo de possibilidades que se abria. Saí da Vila São João, atravessei a Vila Marlene, cheguei no Parque Anchieta, o bairro dos ricos de São Bernardo, e peguei um atalho num grande terreno baldio, que era usado como trilha para se chegar o “campão”, lugar onde hoje funciona o campus São Bernardo da UFABC. O fim da saga foi de digno de um Jules Verne.

Aquele foi um dia de conquista, ver o campo, o jogo daquela manhã ensolarada, ver tudo aquilo que eu só conhecia através do relato dos amigos mais velhos, do meu irmão, que inclusive jogava no Reunidas, daquele mundo de futebol, gols e sonhos de um menino que descobria o mundo.

Pode soar confuso esse misto de memórias de ruas conquistadas na mágica de ser menino, com as ruas esvaziadas por uma pandemia que nos avizinha. O que sinto, é que a memória unida a percepção, é muita matreira. O que vejo nessas ruas vazias desse 2020 de crises e restrições, é um contraste com aquele 1978 de ruas descobertas, de ampliações.

Sei bem que a minha história pessoal não é suficiente para entender o que se passa nesse mundo que até hoje descubro, por onde ele andou e por onde andará.

O que fica no meu sentimento mais sincero, é o desejo que tudo isso passe, vá embora, que o vírus e seu parceiro nefasto, o capitalismo, sejam superados, e todos nós possamos reconquistar em breve a possibilidade de descobrir ruas e pessoas, sem medo das descobertas, sem medo do outro.

O desejo mais profundo é que as ruas se encham de novos mundos.

É véspera de dia do bibliotecário.

Sim, me orgulho, e também sim, às vezes me envergonho.

Há lugares onde falamos livremente, há lugares que em certas ocasiões nos franqueiam a palavra, e há lugares que nos calam ou que nos quais optamos por nos calar.

É nesse misto de gritos, declarações, murmúrios que hoje me sinto bibliotecário.

E saúdo a todas bibliotecárias e todos bibliotecários e todos os que não são, mas estão juntos, na luta para que a palavra, a escrita, as ideias e todas as expressões sejam livres.

Hoje, nessa véspera, estarei na faculdade em que me formei para falar um pouco do que sei, aprendi, desaprendi, das persistências e desistências, nessa história de 29 anos.