Um pequeno conto da quarentena, que veio observado da janela:
- É domingo, sábado?
Só sei que há poucos carros na rua e céu promete chuva. Pouca gente passa, saquinhos de supermercado na mão, alguns com máscara, os mais apressados correm; eu tô aqui nessa esquina todo final de semana, olho, vejo, guardo e jogo e limpo os vidros. Há quem me observe dos prédios, nada vale, as moedas não voam tão longe.
Não, eu não perdi a elegância, a magreza ajuda, a calça preta engana o uso de dias, as caminhadas pela cidade sem fim, mantém o corpo seco. Há pouco passou um casal e deixou uns trocados, elogiaram o shape, ri, pra não dizer como cheguei aqui, eles não queriam detalhes, ninguém quer os detalhes.
A cidade parou, mas a minha vida, a fome, os desejos, estão todos carregados aqui comigo. Uma senhora caminha no passo que pode, olha pra mim, doce, fala baixinho:
- Precisa de alguma coisa, filho.
Quis falar, preciso, preciso sim, preciso renascer, rever tudo, aparecer de novo nesse mundo, ficar em casa (não é isso que tão dizendo agora, nesse tempo de coronga?), preciso de café quente, preciso ter para onde voltar, mas, calo todas as vozes:
- A senhora vai no supermercado? Pode me trazer um pacote de qualquer biscoito recheado?
Ela sorriu, seguiu andando mais devagar, indo como se fosse o meu passado voltando ao contrário, devagar, calmo, cruel. Voltou com um pacote de Negresco (eu gosto muito), estendeu a mão mantendo distância, menos de um metro e meio, mas distante, eu agradeci, eu sempre agradeço, a senhora seguiu calada, silêncio simpático.
Lá vem chuva…
Quatro rapazes de bike, três barbudos, como eu, chegam junto, nas duas bikes da frente tem uma caixa de som, uma música que toca:
“Você! Se ligou que o Corona deixa na lona
O estrago veio à tona
O mal contamina a cada esquina
Mais sério do que se imagina
Só faz a sua parte que eu faço a minha
Não pense que é só uma gripezinha”
A voz eu conheço é o cara do Rio, o MV Bill, saquei rápido que era o troço do vírus, o cabuloso, que seca o pulmão, os barbudos me deram uma garrafa com agua e sabão, um pano limpo para secar, pessoal bacana, não chegaram perto, seguiram o caminho, com uma capas grandes de plástico, máscara, o barbão, pareciam camisinhas andantes.
A noite tá chegando, choveu à tarde aqui na Barra Funda, a esquina tá vazia, parece aqueles carnavais antigos, antes da zoada dos blocos, em que a cidade hibernava morria até a quarta feira, deve ser quase sete, deve ser…
Tem uma praça aqui, tem gente que dorme lá tudo junto, agora não dá, nesses dias não rola, não durmo lá não, vou me arrumar por aí sozinho, passar a noite sozinho. Hoje a minha cabeça tá um agito sozinho, merecia uma parada, não, não dá…tenho que seguir….
Queria que a cidade fosse todo o tempo assim, calma, vazia, mas preciso de gente, preciso de grana, o Brasil não pode parar, passou alguém gritando, porra parar como? Comigo não tem essa de parada, a rua não acaba nunca, é infinita a correria.
Meu bolso hoje tá vazio, preciso de um pouco mais. Fome, ainda bem que ainda não esfriou.
- Já é segunda. Não tem começo, nem fim, tá sempre no meio.