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Arquivo mensal: novembro 2018

Na última sexta feira, uma chuva forte provocou inundação na biblioteca em que trabalho. A água tomou a maior parte do salão principal, mas não chegou a comprometer o acervo, porém um rio de águas turvas circundava as estantes e seus afluentes corriam entre as cadeiras e as mesas

Eram 20:30 e estávamos puxando água com os rodos disponíveis e o resto de disposição que restara de um dia cansativo.

Cerca de dez pessoas aguardavam dentro da biblioteca a chuva parar e a agua abaixar nas ruas do centro totalmente inundadas.

Tínhamos poucos rodos e alguns desses remanescentes ofereceram ajuda para puxar a água e expulsar o rio intruso do salão.

Dois deles se juntaram a nós.

O Adriano é um velho conhecido da biblioteca, leitor de quadrinhos e jogador de rpg, frequenta o espaço desde a adolescência, final da década de 1990. Nesse interim formou-se em direito, e hoje em dia usa o espaço para estudar para concursos e preparar seus trabalhos advocatícios .

Fabio, é um rapaz que começou a frequentar a biblioteca esse ano, morador de rua, usa o espaço como a casa que lhe é possível, navega na internet, eventualmente lê algum livro, carismático e simpático, ganhou a simpatia dos funcionários. Tem uma história de vida dramática, mas sorri e brinca o tempo, como quem dribla os maus pensamentos.

A agua foi baixando fora e dentro da biblioteca, a intempérie criou uma cumplicidade característica dos momentos de solidariedade e ação conjunta. A Elaine, companheira de trabalho, pediu umas pizzas, todos nós comemos e comemoramos.

Naquele momento nenhum de nós era funcionário ou usuário, éramos tão somente pessoas que partilhavam uma alegria, um momento compartilhado que só é possível num espaço público, num ambiente aberto e democrático.

Fim da noite, todo mundo cansado e um pouco feliz. Ir para casa, tomar banho, tomar algo quente, descansar na cama e refazer nos pensamentos, antes do sono vir, o resumo do dia.

E o Fábio? As ruas barrentas e ainda úmidas ainda refletiam o castigo das águas, e são essas ruas que acolhem o Fábio e seu cansaço todo dia. As ruas são duras e implacáveis quando secas, que dirá após uma enchente que subtrai o seu mínimo de organização.

Coincidentemente, na quinta feira, eu perguntei para o Fabio se ele ficava sozinho nas ruas ou compartilhava algum espaço com outras pessoas. Ele respondeu que preferia ficar sozinho para não se meter em confusão alheia. Está há nove anos nas ruas, conhece os perfis e usa a solidão como proteção.

O meu pensamento piedoso não muda um milimetro da precariedade em que o Fábio vive, talvez sirva, no máximo, para que eu elabore o que devo desejar para que isso mude.

Fico então, para o conforto dos meus pensamentos, com a lembrança do sorriso e das piadas do Fabio comendo pizza conosco. Naquele breve momento, a solidão deixou de ser uma opção de sobrevivência.

Sou persistente com o Centro. Nos retalhos da minha vida, a Rua 24 de Maio no sábado à tarde é uma constante. Muitas vezes crua e triste, outras vezes uma alegria recheada de expectativas.

– É uma mensagem para o senhor falar com Deus.

O jovem evangélico, rosto castigado de vida curta e intensa, me entrega um papel cinzento com letras e foto daquele Jesus europeu que se vende por ai. É coisa da gente que fica por ali tentando mudar a vida.

Camelôs brasileiros e africanos disputam os nacos de chão pra vender chineses, a própria arte, o que está ao alcance e nem sempre é permitido. De repente, tudo fica vazio porque chove, somem todos em sombra.

A 24 de Maio é essa companheira que afirmo pra logo renegar em todos os sábados dos retalhos dessa vida. Ela não me dá conversa, quando muito fornece sussurros, confidencia caminhos e engana quando o engano não é opção, mas caminho único.

A 24 de Maio no sábado à tarde é o centro encerrando a semana, se despedindo. Quem fica, vive a rua na hora que ela é escura, não se importa com expedientes, não encerra a semana, a semana é uma longa continuidade pra quem fica.

O meu sábado à tarde na 24 de maio é também uma interrupção é um fim para que seja fim de semana, é o ápice do rolê no centro, é a solidão da procura por si mesmo. Depois recomeça tudo de novo.

A chuva molhou a rua 24 de maio nesse sábado à tarde. A despedida foi com olhar de esgueiro. As pessoas eram sombra, o chão úmido espantou o comércio. O tom triste do fim de tarde não desola porque já foi muitas vezes assim.

Eu sempre volto.