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Arquivo mensal: fevereiro 2012

No fundo esta solidão sempre esteve aqui, sempre, disfarçada em fumaça, em copo, em sorriso.

Mas era terça feira, sim, de verdade uma terça feira. Ao contrário do que já foi dito pode acontecer qualquer coisa numa terça. Lá no fundo uma jukebox. Eu “detestava” aquela jukebox. Deveria ter nela uns 200 discos, nunca contei. Lembro da música que tocou duas vezes seguidas certa noite: “Sailing” do Rod Stewart. Eu não admitia Rod Stewart, talvez na fase “The Faces”, ou antes ainda com o Jeff Beck Group, mas que raios de luxo eu queria? Tanta sutileza para aquelas madrugadas de somas derrotadas, como e pra que escolher a música? Baita frescura.

Bebida quente. Terça, quarta, sei não, apenas sei que a luz do bar era quase amarela, não um truque pirotécnico, mas fraca, definitivamente amarela. As moças dos cartazes das propagandas de cerveja ficavam turvas, de dia talvez fossem lindas, mas nem eram lindas, pois aquela outra moça engajada e esperta, minha seguidora no tuinto, afirmou que propaganda de cerveja com mulher gostosa é exploração negativa da imagem da mulher. Ufa! Eram sempre turvas então, porra!

Era uma inteira noite de terça, sim, pois ela já envelhecera tanto que nem mais seria chamada de terça, era quarta de madrugada. E a solidão incomodava como sempre e  sempre usada para justificar as burrices da noite…  Companhias desagradáveis, pessoas falando demais, de menos, urros e silêncios. Conversa mole e carregada, o tempo vai passar e passa. No final era tudo engraçado. Ou a companhia desagradável era eu mesmo.

Eu dizia da jukebox, ela (alguém)  investia novamente na música que eu não esperava e era uma do Zé Augusto:

Nada mais importa agora
Você foi embora e eu fiquei tão só
Sigo, sem saber meu rumo
Eu não me acostumo sem você aqui

Eu nem gostava de beber, mas estar ali fazia com que o exercício fosse automático, já fazia algumas horas (duas, três) que a moça de olhos grandes que trabalhava na padaria havia passado na rua. Bonita. Calculei que passava das três e meia. Comprava mais cerveja e na medida do copo minha identidade ia esvaziando. Falava qualquer coisa. Fofoca do boteco, comentário sobre a vida de frequentador. O cúmulo. Se eu afastasse os olhos como narrador externo sorriria do patético. Eu nem gostava de beber, mas bebia.

De que vale ter tudo na vida
De que vale a beleza da flor
Se eu não tenho mais teu carinho
Se eu não sinto mais teu calor

É de lascar. Um amigo eclético me contara outro dia, que o José Augusto fazia muito sucesso em países da America Latina, Peru, Colômbia, era ídolo. Sorri ao lembrar, aquela informação encaixava no momento. Virou relevante com a trilha no fundo. Ensaiei falar sobre com alguém, mas cada qual estava afundado na sua história própria. Fiz que fiz que e guardei para mim. Àquela hora era a vista ou desistir, não dava para ter conversa a prazo. Calei, sorri.

Tudo era motivo para ir embora, não tinha mais nenhuma cor no rosto do Suélio,  o balconista/dono do bar. Ele sempre destaca filosófico que às vezes é o dono, outras o balconista. Assim toca o seu negócio se adaptando às circunstâncias. Nenhuma cor naquela hora, então, apenas pedir a conta e ele vinha solícito com aquele rascunho sempre honesto, tantas cervejas e o garrancho destacando os quentes e os petiscos. Pagar e andar.

A jukebox repetiu a música do José Augusto, eu comecei a imaginar a letra em espanhol e ri, ninguém entendia porque que eu ria naquele momento. O eco do som aumentou na noite. A música quase sozinha comigo no salão. Genial fim de noite. Minha casa é perto, quase extensão, vou decidir, vou dormir. Amanhã, talvez, e ao menos a música do Rod Stewart. Eu ria, ria… mas nem aparentava…

Hoje, eu estou tão livre
Posso amar a quem quiser
Mas nada me interessa
Mesmo que ofereça o mundo aos meus pés
Sei, outro alguém te ama
Pensa que você já me esqueceu
Mas ao sentí-lo perto
Tudo é tão deserto, você pensa em mim

A solidão sempre esteve por aqui. Ela vai embora comigo disfarçada em farol, faixas, asfaltos, solta na rua.

Uma noite comum.

Conheci minha cidade nublada. Contam que na madrugada que nasci garoava fino. Minha mãe diz que em São Bernardo geava como açucar, cidade perto da Serra. Aprendi que era assim mesmo. Não reclamava a falta de sol. A cidade antes de eu nascer era mais fria. Pensava assim. Mas ainda nos anos 70, infância, ficava dias sem ver o sol. Tal qual a “Londres de neblinas finas” de outrem. Mário.

Lembro bem do ano de 1976, manhãs gélidas, sempre acordei cedo, ia para escola perto de casa. O caderno, o lápis, os dedos, primeiras palavras, o frio, o frio…os cabelos chegavam levemente molhados na escola. Era o alerta da manhã. Roupas úmidas e improvisadas e fuga dos guarda-chuvas. Estudar no frio, o sacrifício.

Sobra de roupa de algum parente, usava uma incomoda malha vermelha grossa que colocava por baixo do guarda pó branco. Sim, usávamos guarda-pó. Nele era colocado (pela mãe) um bolso com o simbolo e o nome da escola: EEPG Estrada do Mar. E a professora explicava que a “Estrada do Mar” era o caminho que o Imperador (D.Pedro I) fazia de Santos a São Paulo. Devia garoar demais para cima da caravana do imperador. São Bernardo, no meio do caminho, recebia em conta gotas (de garoa) o Imperador.

Várias dessas histórias se misturam ao horror das filas onde cantávamos todo o dia o Hino Nacional antes de subir para a sala de aula. Cabeçudo e grandão, eu ficava sempre entre os últimos. Quase fora da cobertura, no frio, na garoa. Quando em vez variavam os hinos, da Bandeira, do Soldado e algumas canções ufanistas. Era a ordem instaurada. Sorte é que menino pode ser rebelde sem razão, muitos de nós não cantavam o hino. E ficava aquele gosto de ser indisciplinado. Achava até bonito os hinos. Muitas vezes hinos frios e molhados.

Eram frias as manhãs. Mas o frio se misturava ao prazer nos intervalos, do recreio. Garoava na quadra e improvisávamos uma bola de papel e durex. Chute para cá e para lá. Tombos na garoa. Eu, o gordo, caía sempre, levantava vermelho e já partindo para a revanche. Não podia vacilar. Estes jogos não tinham vencedor. Eram os jogos da garoa. Não consigo lembrar dos gols ou passagens geniais, apenas da quadra molhada e do desafio.

A minha infância da garoa, das tardes mais sós a imaginar jogos e passatempos. Nem sempre a rua, quando garoava, mas a rua era até mais graciosa na garoa. Inventar os mesmos brinquedos, solitários e em grupo, na garoa. Voltar encharcado para casa, não por chuva caudolosa, mas por insistir em ficar na garoa. Molhado a longo prazo. No final era como ter nadado na tempestade. Tarde inteira na garoa.

Aos nove anos, míope, os óculos inimigos da garoa. Vivia secando com a borda da camisa os óculos molhados. Dormia de óculos, jogava bola de óculos, pouco enxergava sem ele. Descobri que melhor eram as lentes molhadas do que a miopia molhada. Entendo agora que os vidros ajudaram marcar a presença da garoa. Como as lentes, as janelas, o vitraux da sala, os parabrisas dos ônibus, que me protegiam e ao mesmo tempo me lembravam que eu vivia sempre com ela.

Hoje quando vejo a minha cidade nublada e garoenta não reclamo. A fiel companheira que me viu nascer, marcou vários momentos, às vezes volta. Já não garoa tanto em SBC, foi-se o tempo dos dias e dias sem sol. Hoje os intervalos são curtos, o seco prevalece. Mas a garoa vem sempre lembrar e lamber sua presença. Bem provável que não mais nos merecemos. Eu, a garoa, os tempos úmidos que se foram.

Rock and Roll, branco, preto, dos campos de algodão, caipira, urbano, barulhento e lírico. Minha perdição.

Você pula da cama de manhã e o mundo parece te assombrar, talvez o medo da juventude que não tinha ainda o barulho. Não tem motivo, o desânimo é a velha busca da canção perfeita, que encaixa, que te animará o dia, que o fará melhor.

Cash, Clapton, Carl..

Que venha a vida, que venha o dia, que venha a canção, é bom repetir:

Rock and Roll, branco, preto, dos campos de algodão, caipira, urbano, barulhento e lírico. Minha perdição.

Para todos os amigos e amigos:

A música chega, interfere, modifica nosso cotidiano, a ela é dada de forma reducionista a função de  pano de fundo. Muitas vezes não é nem uma questão de gostar ou não gostar. A teoria do gosto vulgarizada, não dá conta, fetichizada, dá menos conta ainda.

E a “Moça” do Wando fez eco na vida de muita gente. No ano de 1976 as rádios populares tocavam este canto sestroso do músico mineiro. E os anos não deram limbo à canção, ficou, Wando ficou. Verdade é que embrulhado num pacote difuso chamado “brega” onde cabe qualquer música que tenha algo de estranho ao “bom gosto” hegemônico. Todo mundo tem algo de brega e este hegemônico não passa de um barco furado.

Wando , artista popular, sem pompas e tradições inventadas.

O meu conhecimento sobre Wando não ultrapassa o senso comum. Desde os anos 70, sua música chega aos meus ouvidos envolta em ironias e sarros. Constante presença. Calcinhas, trilhas de novelas, entrevistas engraçadas, sinceridade e trajetória impecável. A impressão que fica e que ele ria de quem achava que estava rindo dele, e com elegância. Sempre foi o quis ser.

Do período autoritário à era do politicamente correto caricato, Wando preservou a sua integridade. E não é a integridade impositiva, do bom gosto, do transgressivo bem comportado. Artistas como Wando constroem sua trincheira de luta, criam o próprio espaço. E ele permaneceu, independente de quem quis enquadrar sua música onde ela não cabia.

Wando faleceu nesta madrugada (08/02/2012). Foi nosso autêntico fazedor de “torch songs”.

A “Moça” agora tem 36 anos. Na sensualidade da canção fica uma pontinha de melancolia.

Boa viagem, camarada.