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Arquivo mensal: maio 2020

Fico sabendo da morte do cinesta e gestor público, Leopoldo Nunes, um importante nome do cinema brasileiro e da militância cultural. Leopoldo veio do cineclubismo dos anos oitenta que somado à militância da esquerda, a formação em Cuba, lhe deram um olhar muito singular sobre a política cultural.

Foi com essa bagagem que o rapaz de Santa Fé do Sul, interior de São Paulo forjou seu olhar para fazer cinema autoral e entender o quanto a construção de politicas públicas, o fomento, formação e difusão são fundamentais para dar vazão aos anseios populares.

Trabalhamos juntos na Secretária de Cultura de São Bernardo do Campo no período 2011-2013. Sempre aberto ao debate, polêmico, intempestivo, um realizador, bom de briga, de idéias, um cara de esquerda, um cara de luta.

Sob a sua gestão e incentivo implementamos na Divisão de Biblioteca Pública, o programa Agentes de Leitura em parceria com o Governo Federal um momento que marcou muito as nossas vidas como profissionais e militantes, momento de aprendizado, descobertas e expansões.

No ano de 2018, parte de 2019, Leopoldo virou meu vizinho aqui na Barra, sempre o encontrava do trabalho à noitinha, nos bares ou voltando do supermercado nessas coisas prosaicas da vida. Sorrisos, piadas, simpatias e a indignação bolchevique de sempre.

Como dizia Aldir Blanc na canção Vida Noturna, Leopoldo era “um dos nossos”. Sao tempos de fratura, são temos de muitas despedidas, são tempos de resistir, sao tempos de fazer valer o legado de quem lutou.

Boa viagem, camarada!

Certa vez, Dylan classificou “Hard Rain is Gonna Fall” como uma longa canção fúnebre e em que cada linha escrita está inscrita a sua inquietude sobre o mundo.

Bob Dylan cunhou em “Hard Rain is Gonna Fall” o melhor verso sobre polarização:

I met one man who was wounded in love,

I met another man who was wounded with hatred*

Pessoas feridas polarizam e o que resulta é imprevisível. O que prevalece é a incompreensão dos motivos do outro. Daí, fica muito difícil distinguir o amor do ódio.

A pandemia nos aproximou da ideia de finitude e a necessidade de entendermos e sobretudo sentirmos as nossas polarizações internas, os nossos amores e ódios que invariavelmente se chocam com os amores e ódios do outro.

É preciso ouvir o jovem Dylan

*Eu conheci um homem que foi ferido no amor, Eu conheci outro homem que foi ferido de ódio

Três pretos.Três lugares do Brasil. Pra ser mais exato, como disse um deles: três rostos do Brasil. E quem consegue seguir sem esconder a dor de se encontrar?

O tempo da história é o tempo descrito por suas canções. Demorou um tanto para que eu entendesse os anos de 1970 do século passado.

No início da década, eu tinha quatro anos, findei em plena adolescência, foi uma década de muitas canções que descobri, que iluminavam algumas dores íntimas e me faziam saber os significados que o mundo externo mandava.

A ditadura não era do meu entendimento, era apenas aquele misto de hinos cantados na escola, de carros de policia passando na rua, de presidentes generais de óculos escuros na tevê.

Mas voltemos às canções. Digo, sem vacilos, que se eu pudesse resumir em duas composições, duas bem escolhidas, que o meu entendimento, hoje amadurecido, faz traduzir a ditadura, seriam elas duas que falam de mar: “Movimento dos Barcos” do Jards Macalé, e “Cais” do Milton Nascimento. Basta ouvi-las que volta o tempo elucidado.

Ditadura é impedimento, portanto, nada como duas canções que usam mar como cenario, mar que eu demorei anos pra conhecer, pra melhor descrever o que a ditadura deixou em mim: a sensação de impedimento.

E é aqui que voltam e imperam os três rostos pretos que bem fazem invadir a minha tarde desse primeiro de maio: Milton Nascimento, Criolo e Amaro. As duas vezes pretas e o piano cheio de lamentos e timbres de uma tradição preta.

Um saudoso amigo me disse, entre irônico e sabido, que a música brasileira sem os pretos seria um nada boiando entre três caravelas. Ele sempre esteve certo.

O trio retomou Cais, inventou um novo cais em 2020 e brilhou. Uma feliz regravação.

Às duas vozes profundas de distintas gerações, Milton e Criolo, se juntou o piano e o arranjo maravilhoso do jovem recifense Amaro Freitas. Freitas conseguiu um feito, pra mim impensável, superar o arranjo original, mais que perfeito de Wagner Tiso.

Um presente, um agrado raro nesse tempo triste e atribulado. É pra ficar feliz, pra deixar de impedir. Invento em mim o sonhador…